uma vez escrevi um livro. outra vez também. mas cansei-me das duas vezes ao fim de dez páginas e eles morreram tragicamente antes da idade.
pensar dá muito trabalho e consome demasiada energia. fazer de deus, criar personagens do nada, espirrar mapas com linhas que não existem, adormecer a delinear horizontes e perder o autocarro por causa da árvore que tinha de ficar mesmo no meio do vale e se perdeu no caminho até lá e agora estão os corvos todos a reclamar e toda a gente sabe que os corvos quando reclamam fazem um chinfrim e que as vírgulas caíram todas na descida da montanha e agora para as encontrar é um castigo que nem
vos digo.
é mais fácil não pensar. molhar só as mãos em tinta, abrir cem a duzentas páginas e molhar as filhas da celulose com uma coisa qualquer. não são palavras a dançar o tango umas com as outras. não são letras a saltar do céu num pára-quedas cor de arco-íris. mas isso não importa ou pouco importa. dá na mesma para pôr uma capa, esconder debaixo do braço e descer pela avenida das letras com o nariz levantado com ar de intelectual.
outra vez escrevi outro livro. era sobre um eucalipto que não lia, porque cada vez que pegava num livro se imaginava a remexer nas entranhas de um seu parente afastado. um robot aparecia na floresta, apresentava-lhe o admirável mundo onde telefones e tablets salvavam toda a família do eucalipto, o que o fez escorrer seiva de alegria. depois, o robot disse-lhe que os eucaliptos já não serviam para nada e cortou-o aos pedaços. é por estas e por outras que deixei de passar os dias a escrever livros.
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