Todos os grandes escritores exploram o tema da infância. Eu não sou uma grande escritora (não sou sequer uma escritora) mas hoje também quero falar da minha infância.
Desse período recordo a ausência de responsabilidades e o tempo preenchido com brincadeiras criativas. Lembro-me ainda - e com menos saudades - de atitudes cruéis que me envergonham. Quando inventei que uma menina tinha piolhos, quando enterrei o aparelho dos dentes de uma amiga na areia da praia e todas aquelas vezes em que impedia as outras crianças de participarem em jogos porque, uma vez que os tinha inventado ou tomado a iniciativa de os jogar, achava-me no direito de excluir, por capricho, aqueles de quem não gostava.
Outra coisa curiosa foi descobrir ao longo dos anos a quantidade de palavras que, apesar de se assemelharem foneticamente à palavra original, eram ridiculamente mal pronunciadas ou escritas. Eu pensava, por exemplo, que rebuçado se dizia burro-assado e escrevia igreija e muinto nas composições da escola primária... À conta destes e doutros disparates passava a tarde a corrigir a minha ortografia, preenchendo com sacrifício uma página do caderno com igreja e outra com muito. Reconheço agora a competência daquela a quem eu, instruída pela minha avó, chamava solenemente Senhora Professora.
E eram os meus aniversários e a casa cheia de miúdos felizes que comiam com prazer os bolos, as gelatinas e os rebuçados (vá lá, aprendi!); as tardes de Primavera no quintal dos meus avós a colher morangos; as férias de Verão e os amigos da praia que duravam uma quinzena e eram substituídos, sem desgosto, por outros na quinzena seguinte. Depois Setembro, o regresso à escola, reaprender o gesto de segurar na caneta e gatafunhar desajeitadamente, numa letra de analfabeto que agora decifro com esforço, a primeira composição do ano com o invariável título "As férias grandes".
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