Avançar para o conteúdo principal

as pessoas e a cómoda

a vida tem a mania de se compartimentalizar. são estados atrás de estados na infância, são fases atrás de fases na adolescência, são saltos de ponto para ponto na vida adulta. são muitos anos passados à face da terra (na verdade são sempre muito poucos) em que tanto pessoas como coisas fluem por nós. aparecem e desaparecem da nossa vida como incandescentes meteoritos quando invadem a atmosfera.

para tudo isto, e sem ser por vontade própria, desenhamos dezenas ou centenas de gavetas, destinadas a cada um destes encontros vida fora. umas gavetas são abertas uma vez e logo fechadas para a eternidade. outras são abertas quando calha, e quando de lá salta a pessoa que ali esteve fechada anos a fio, é instantânea a corrente eléctrica que salta da gaveta para a nossa pele e acaba a aquecer o coração. outras gavetas há que trancamos a sete chaves e, ainda assim, vamos confirmar se não há hipótese de quem lá prendemos sair pela parte de trás do móvel. 

penso muito na ironia das palavras com que terminam muitos dos encontros. um "então havemos de combinar qualquer coisa", um "isto é só até já", um "vamos falando", que são tantas vezes voltas dadas à chave sem que nos apercebamos que estão a ser dadas. a relevância de viver o momento, de dar abraços sentidos, de marcar as pessoas, de partilhar risos e sorrisos e lágrimas, é que cada momento tem demasiado valor para que não seja vivido como tal. a vida troca-nos as voltas, os temporários passam a definitivos, as certezas esfumam-se como papel envelhecido e nada é mais garantido do que apostar as fichas quase todas no presente e esperar que a roleta se porte bem.

claro que a vida não são só gavetas. temos os distintos, os especiais, aqueles que não merecem chave porque têm sempre o coração aberto à nossa espera. esses vivem em molduras, emproados em cima da cómoda, sempre à distância de um esgar. moram em cima de todas as gavetas que resolvemos (teremos mesmo resolvido?) abrir e fechar, como se fossem estrelas a viver acima dos meteoritos.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

À terceira é de vez!!!

Como tenho muita lata... este post é na linha de dois recentes... (um deles mesmo recentíssimo, o meu último) e trata da adaptação, não de séries (porque somos muito oranginais por estas bandas e isso depois na verdade tornar-se-ia repetitivo... quer dizer... até parece que assim não...), mas sim de filmes estrangeiros, para português. São novidades muito secretas e portanto só espero que tenham bastante cuidado na divulgação das mesmas (ao dizer isto espero que as publicitem, bem como a vinda aqui ao meu "little corner", numa jogada minha à laia d'"o fruto proibido é o mais desejado"). - Tó Pegane : história de um filho de uma ex-emigrante "na França" (daí a sempre típica mescla do nome António com o Pegane do francês com quem a senhora se casou). O rapaz entra para a Força Aérea, e depois há para lá umas intrigas. Ah! Na cena mais espectacular do filme, Tó Pegan faz um cozido à portuguesa, utilizando para aquecimento dos ingredientes a barriga...

na moda

Está na moda escrever sobre o amor. O truque é pintar o dito de lugares comuns e adornar o produto final com duas ou três asneiras das pesadas para emanar pseudo-rebeldia. O conjunto de palavras é tão bonito e tem uma força tão positiva que o que está mesmo a pedir é para ser posto num rectângulo, acompanhado de uma imagem do pôr-do-sol/paisagem verdejante/gatinhos/silhueta de um ou dois corpos (riscar o que não interessa) e feito, está pronto a sair do forno para esse sufrágio universal que são as redes sociais. Está na moda gostar dessa visão do amor. Que tenta copiar alguns traços dos mestres mas que os copia mal e porcamente, borra a tinta toda, mas encontra destinatários com a visão tão baça que nem dão por isso. Dantes havia o condão de ficar preso às letras do Shakespeare, do James, do Cummings e de tantos outros. Todos eles vieram por aí fora, ainda há bem pouco tempo dava para jogar à macaca com o Cortázar, mas está tudo a trocar a macaca por meia dúzia de macacos, que ap...

Sliding Doors

Assim que abriu a porta sentiu o cheiro do perfume dela. As moléculas atravessavam todos os recantos da sala, saltavam do pescoço dela, atravessavam as partículas feitas do mesmo pó que as estrelas, para se irem alojar nos sensores olfactivos do seu nariz, refinados durante anos para saber distinguir o agradável do nauseabundo, bem como tudo o que está pelo caminho. Os cabelos dela brilhavam como se tivessem sido tocados pelo Rei Midas. Deslizavam pelas costas, lembrando-lhe a cor com que fica a encosta inclinada de uma montanha naquele lusco-fusco que se precipita ao pôr do sol. O nariz dela tinha as proporções perfeitas de uma rainha do século XVIII e era empinado o suficiente para lhe dar o ar de quem sabe por onde vai. Os seus olhos estavam, com certeza, nos lugares cimeiros da lista dos olhos mais bonitos do mundo. Tinham tanta vida, pensou ele, eram da cor que resultaria do acasalamento do azul turquesa com aquele verde dos lagos da Croácia. ...