a vida tem a mania de se compartimentalizar. são estados atrás de estados na infância, são fases atrás de fases na adolescência, são saltos de ponto para ponto na vida adulta. são muitos anos passados à face da terra (na verdade são sempre muito poucos) em que tanto pessoas como coisas fluem por nós. aparecem e desaparecem da nossa vida como incandescentes meteoritos quando invadem a atmosfera.
para tudo isto, e sem ser por vontade própria, desenhamos dezenas ou centenas de gavetas, destinadas a cada um destes encontros vida fora. umas gavetas são abertas uma vez e logo fechadas para a eternidade. outras são abertas quando calha, e quando de lá salta a pessoa que ali esteve fechada anos a fio, é instantânea a corrente eléctrica que salta da gaveta para a nossa pele e acaba a aquecer o coração. outras gavetas há que trancamos a sete chaves e, ainda assim, vamos confirmar se não há hipótese de quem lá prendemos sair pela parte de trás do móvel.
penso muito na ironia das palavras com que terminam muitos dos encontros. um "então havemos de combinar qualquer coisa", um "isto é só até já", um "vamos falando", que são tantas vezes voltas dadas à chave sem que nos apercebamos que estão a ser dadas. a relevância de viver o momento, de dar abraços sentidos, de marcar as pessoas, de partilhar risos e sorrisos e lágrimas, é que cada momento tem demasiado valor para que não seja vivido como tal. a vida troca-nos as voltas, os temporários passam a definitivos, as certezas esfumam-se como papel envelhecido e nada é mais garantido do que apostar as fichas quase todas no presente e esperar que a roleta se porte bem.
claro que a vida não são só gavetas. temos os distintos, os especiais, aqueles que não merecem chave porque têm sempre o coração aberto à nossa espera. esses vivem em molduras, emproados em cima da cómoda, sempre à distância de um esgar. moram em cima de todas as gavetas que resolvemos (teremos mesmo resolvido?) abrir e fechar, como se fossem estrelas a viver acima dos meteoritos.
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