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Os números piscavam a vermelho no fundo escuro. O escuro era da noite por fora, por dentro a culpa não era da noite. Ou então era de noite também por dentro. Dentro da cabeça uma pulsação contínua, um incessante martelar, uma inequívoca prova de vida e um considerável incentivo à morte. O dia rodava dentro da caixa craniana a uma velocidade superior àquela com que camisolas, calças e roupa interior dançam dentro da máquina de lavar roupa. As ideias misturavam-se de tal modo que apenas se conseguia lembrar da receita de um bolo. As preocupações de ontem a fazer de farinha, o que de novo aconteceu nesse dia mascarado de fermento, todos os planos para amanhã e depois com cara de ovos acabados de deslizar casca fora. E a vida, essa batedeira eléctrica de último modelo, a tratar de misturar tudo com a pressa de quem tem fome e gulodice. Sorriu no escuro e sentiu felicidade por sentir os músculos da face a relaxar. Uma das melhores coisas que o sorriso tem é a capacidade de pôr as rugas em banho-maria. Tinha lido num livro que cada vez que alguém sorri se libertam neurotransmissores no cérebro que contribuem para a felicidade. Imaginou logo uma conversa entre uma das suas múltiplas personalidades e a massa encefálica, em que a personalidade perguntava "em que é que isso contribui para a minha felicidade?" e a massa encolhia os ombros. Depois pensou no obstáculo anatómico de o encéfalo não ter ombros. Não tem ombros, mas controla a sensibilidade e o movimento dos ombros, por isso fica ela por ela.

Perdido nos seus pensamentos não deu pela corrida desenfreada dos números vermelhos no escuro. A pulsação baixou, os pulmões começaram a encher e esvaziar mais devagar e a porta abriu-se, por fim, para o mundo do descanso. Ou o mundo de uma outra forma de cansaço.

Para lá da porta estão de mãos dadas o alívio de acordar do que é mau e a desilusão de acordar do que é bom. Isto se tivermos a máxima confiança na nossa arrogância de achar que sabemos qual é o lado certo, que entendemos perfeitamente de que lado estamos acordados e de que lado estamos a dormir.

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