a hora da morte.
quem trabalha num hospital sabe bem o que isso significa. quem vê séries sobre o que se passa num hospital fica mal informado a respeito de muita coisa mas nesse aspecto não é totalmente desinformado. há de facto que declarar uma hora para a morte biológica. exacta. aproximada. depende. mas o mundo adora etiquetas e a hora da morte tem de ser mais uma.
o peso carregado pela morte biológica é inexcedível. milénios de tradições e crenças, mais ou menos adaptadas, reflectem sobre a morte, sobre o que se deve seguir a curto prazo, sobre o que se vai seguir a longo prazo, sobre o modo de celebração ou luto. que são conversas para outro dia.
preocupa-me que se questione pouco a morte não-biológica. vivemos numa sociedade que tem um íman cada vez mais potente para tratar disso mais cedo. na minha humilde opinião a morte não-biológica chega no dia em que deixamos de perguntar porquê. a questão não deve perturbar a delícia, deve inversamente melhorar a sua experiência. passo a explicar-me. se vos for servida uma dose de bacalhau com natas o mais natural é ir de garfada em garfada até à garfada final. a televisão ligada ou uma conversa pouco produtiva no ar e o tempo passa num ápice. sim, sei que o princípio base da alimentação é a absorção de nutrientes que nos permitem sobreviver. mas terá de ser sempre assim? porque é que é em cada garfada de um prato de bacalhau com natas não podemos perguntar como é o ciclo de vida do bacalhau, como é o seu processo de secagem, quantas viagens faz até chegar do mar da noruega à mesa do nosso 3º direito? virá ironicamente de barco? ou de avião? ou prefere a estrada? e as natas? como foram feitas? de onde vêm? que tipo de pasto andaram as vacas em causa a frequentar? em que hora do dia é que o leite é mugido da vaca? e as batatas? por onde andaram até chegar ao prato? que agricultores as puseram na terra e quais de lá as tiraram? em que altura do ano? a que horas acordaram para o fazer? que truques usaram para fazer daquele um terreno mais fértil que as mulheres do genghis khan?
é muito fácil passar por cima de tudo isto. é tão ou mais fácil achar estranho que alguém se pergunte sobre isto em vez de comer o raio do bacalhau calado e passivo. neste ponto sou extremamente lamarckiano e garanto-vos que há orgãos que só se desenvolvem (ou mantêem desenvolvidos) se forem usados com frequência. e a resposta a estas questões não vos garante o primeiro prémio do quem quer ser milionário ou a atribuição do prémio no conceito tradiocional de inteligência (racional). mas permite-vos sem dúvida olhar para o mundo com um sorriso mais largo na cara.