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um, dois, experiência

dou por mim muitas vezes a pensar que o conforto da rotina retira alguma acutilância à capacidade de observação. fazer os mesmos caminhos, subir os mesmos degraus, repetir as mesmas tarefas, do alourar alho e cebola ao dobrar de camisas, permite-nos manter um padrão e entender a linha orientadora do dia-a-dia. a paz quase uterina que tudo isso nos traz (por mais que nos finjamos todos mentes hipercriativas e passemos o tempo a bradar aos céus que a rotina é um horror) é uma espécie de reset diário, um re-acertar dos ponteiros quando se encontram de novo ambos a zero graus e nas doze.

sair do ciclo da rotina e dar um mergulho nas águas do desconhecido pode ser abordado de modos bastante distintos. pode-se optar por ir com o medo do que nada naquelas águas escuras. pode-se tentar mergulhar com uma armadura medieval vestida imaginando-se mais esperto que todos os possíveis monstros marinhos. pode-se, por último, mergulhar com a descontracção de quem quer descobrir e experimentar em vez de usar todo aquele precioso tempo a temer o desconhecido.

ontem fui pela primeira vez a um concerto de metal. aparentemente há dezenas ou centenas de sub-tipos de metal e temo pela vida se arriscar dizê-los e o tiro me sair ao lado. não sendo um fã confesso deste género musical, adorei, no entanto, a experiência.

começo nas filas. vesti uma t-shirt preta e levava um casaco preto, achando que me ia sentir completamente integrado. assim que cheguei às filas para entrar notei logo várias falhas na minha indumentária e aparência. pelo menos uma das seguintes alíneas é indispensável: a) calças de camuflado, b) t-shirt ou camisola alusiva a uma das bandas presentes ou a outras bandas de metal, c) barba comprida e/ou cabelo comprido. não digo isto em tom jocoso. juro. tem muita piada observar aquele culto, observar aquela peregrinação conjunta de gostos e ideais, o componente mais ou menos político, mais ou menos filosófico, por trás das palavras (às vezes "palavras") dos vocalistas das várias bandas. a comunhão da cerveja, do eyeliner, dos cabelos esvoaçantes, seja para a frente e para trás seja imitando uma torre de energia eólica.

ao fim de quatro horas de concertos, e guardando mentalmente vários (muitos!) pormenores deliciosos para momentos criativos futuros, a minha principal conclusão foi de ter estado num grupo de gente bem disposta, educada e seguidora até de um conjunto de regras que não se encontram noutros concertos teoricamente mais "pacatos".

com isto não me tornei repentinamente o fã número um mundial de metal. mas, como tudo na vida, para falar das coisas, seja bem, mal, mais ou menos, ou assim assim, convém vivê-las e conhecê-las, nem que seja só uma vez.

Comentários

José Costa disse…
Finalmente alguém desobstipado! Há muito que não encontrava um espaço na internet onde sentisse isto. Ideias diferentes, algo diferente do tédio ubíquo!
Vim cá ter por acaso, devo dizer que o nome do blog e o próprio grafismo me atiçaram pouco a expectativa (preconceito!).
Só parei para ler um post por causa do texto do nihilismo. Logo se provou que julguei tudo extremamente mal. Que fluidez intelectual nessa interpretação do nihilismo. Todos os posts aliás, muito bons. Saliento tb born slippy e contrariedades. E porquê dizer isto aqui? Só porque vim a lê-los de lá até ao mais recente e agora que acabei não posso não deixar um elogio quando algo me agradou tanto. continua, hei de continuar a explorar o que para aqui tens.
José Costa disse…
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Muito obrigado pelo elogio, José :) um abraço!

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