o sol entrava decidido pelas frestas das persianas, teimando em desenhar sombras chinesas, exércitos de luz, outrora de terracota, agora de claridade. enquanto os fotões traziam a imaginação à parede, a minha mente andava perdida por outros mundos, a anos-luz de distância.
era como se fosse hoje. entrei pela porta verde, com as letras pintadas a branco, de fresco, fiquei até com um ou dois dedos sarapintados, e as teias de aranha faziam adivinhar que do lado de lá se encontrava um tesouro daqueles que demoram séculos a descobrir. o baú tinha um código, mas era fácil de descobrir, 083, era estranhamente evidente. enquanto rodei a combinação, senti um largo sorriso no escuro, atrás de mim. por segundos tive a certeza de ter por perto o gato da alice. só que este país tinha poucas maravilhas e a pressa era muita para chegar ao conteúdo do cofre. sacudido o pó, e ultrapassado o ataque de tosse da praxe, vi por fim a garrafa e o líquido túrbido no seu interior. tinha cor de ser vítima dos anos, ar de ter vapor de experiência e um travo a sabedoria. arranquei com violência a rolha gasta e bebi tudo de um trago, certo de que há coisas na vida que ou são ou não são.
de repente tudo ficou mais claro. após o pânico do momento em que tudo parou, foi com enorme alívio que senti a terra recomeçar a rodar, mas desta vez em sentido contrário. à frente dos meus olhos vi o caos em que tudo entrou. vi as marchas-atrás passarem a marchar para a frente, os comboios a chiar de pernas para o ar e os arranha-céus a virar arranha-terras. ninguém sabia bem o que fazer mas eu sabia, mais do que nunca, com certeza, que tínhamos voltado a entrar nos eixos.
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