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toda uma espécie de arco-íris

entrou no café com o ar desafogado de quem não vive debaixo da água que o mundo quer à força impor. o seu casaco verde alface podia ser uma peça de artista da última colecção de moda, vendido pelos melhores estilistas custando o mesmo que custa uma casa em mais de oitenta e três por cento do mundo. não era o caso. era só um casaco, comprado de entre tantos outros, perdido num qualquer armazém de uma grande superfície, recolhido por força de um desconto apetecível e de uma vontade de estrear algo que chocasse com a força da luz.

o quadro ficava completo com umas calças amarelo torrado e uns sapatos que pareciam ser reciclados de um disco de vinil. um disco de vinil a tender para o grená, vá.

a minha primeira impressão foi que a bandeira do brasil tinha acabado de ganhar pernas e braços e decidido entrar café dentro numa súbita e inesperada publicidade turística.

não era o caso. vi que a pretensa bandeira tinha o cabelo grisalho dos oitenta/noventa anos. debaixo do festival de cor era visível a couraça da idade, as rugas da experiência, o gasto do sorriso, a definição das provações. cada ruga contando a sua história, numa espécie de conversa interminável geradora de barulho indistinto mas confortável.

após o primeiro gole do seu café suspirou. aquele suspiro que ao mesmo tempo marca presença e diz ao que se vai, porque cá se anda, para onde se vai em breve. fascinou-me a despreocupação com que a história ria de alto e preferia homenagear as várias cores do mundo, numa homenagem em arco-íris, por oposição à outra opção, que seria cinzentamente esperar o fim.

a vida tem cor. e o facto de a morte estar próxima não deveria permitir o seu desaparecimento. até porque cada um de nós terá imenso tempo livre para fazer o seu próprio luto depois do último batimento do coração.

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