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a insustentável estupefacção pela ausência de vidas extra

tive a sorte de crescer ao mesmo tempo que os vídeojogos cresciam. numa época em que o triunvirato da diversão, felizmente, se dividia entre bons livros, brincadeiras de rua e os referidos vídeojogos.

dos livros não preciso de falar porque das maiores vantagens competitivas do mundo é saber e gostar de ler. se houver dinheiro compram-se, se não houver vai-se a uma biblioteca, mas não há qualquer desculpa (pelo menos para nós, os felizardos do mundo ocidental) para dizer que não se aprendeu mais sobre mais coisas porque não se teve oportunidade para isso. quando muito pode escassear o tempo, mas já há muito tempo concluí que o tempo (ou a falta dele) depende mais da forma como organizamos a sua qualidade do que da importância que pomos na sua quantidade.

as brincadeiras de rua são outro pilar importante do mergulho nas nossas raízes animais. somos seres vivos nascidos da natureza e à natureza vamos parar. tornámo-nos tão brilhantes na engenharia das nossas vidas que nos fechámos em cidades de betão e nos refugiámos em cubículos de escassa dimensão, onde habitam no chão madeiras cujo nome dizemos pomposamente sem que a maior parte de nós tenha sequer tocado num tronco de uma árvore das que acabam debaixo dos nossos caseiros pés. não é suposto. não defendo que voltemos a viver em cavernas, mas devia ser um direito adquirido (e um dever de espécie) poder ir à praia e não ter de desviar sacos de plástico no mar, enfiar uma beata apagada nos dedos dos pés, pelo meio da areia, ou ter de pagar, hoje em dia, para que uma criança possa brincar numa floresta, fechada e controlada (a floresta e a criança), onde vai poder saltar ainda menos do que aquilo que nós podíamos saltar.

por último os vídeojogos. oiço toda a gente dizer que os filmes da disney e as histórias de príncipes e princesas nos elevaram em demasia as expectativas para a vida adulta, mas não enveredo bem por aí. talvez quem tenha umas orelhas grandes se consiga identificar com os problemas do quotidiano do dumbo, mas não sou grande apologista dessa corrente. os vídeojogos, quando apareceram, e à medida que se foram desenvolvendo, tinham que sobreviver através da criatividade e do argumento, já que os meios tecnológicos não eram nem de perto comparáveis com os que hoje existem. obrigavam-nos mais a pensar e menos a disparar. forçavam-nos a imaginar uma história em vez de ficarmos embevecidos com a tridimensionalidade das personagens e da pixelizada paisagem. traziam contudo também uma série de falsas expectativas. damos por nós a crescer e a descobrir que a história das vidas extra é uma farsa, que raramente temos 'continues' e que, imaginem bem, mesmo que limpemos (metaforicamente, gente violenta) do nosso caminho quem não nos quer bem, eles não desaparecem permanentemente daquele lugar.

no fundo deve ser bom crescer em qualquer época e eu não passo de uma espécie de velho dos marretas. mas não posso deixar de sentir que este mundo em que vivemos cada vez tem mais, e por isso mesmo cada vez tem menos.

Comentários

Ethopathológico disse…
"desperdicei uma vida a jogar videojogos, por sorte ainda tenho mais duas"

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