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A mostrar mensagens de 2015

na moda

Está na moda escrever sobre o amor. O truque é pintar o dito de lugares comuns e adornar o produto final com duas ou três asneiras das pesadas para emanar pseudo-rebeldia. O conjunto de palavras é tão bonito e tem uma força tão positiva que o que está mesmo a pedir é para ser posto num rectângulo, acompanhado de uma imagem do pôr-do-sol/paisagem verdejante/gatinhos/silhueta de um ou dois corpos (riscar o que não interessa) e feito, está pronto a sair do forno para esse sufrágio universal que são as redes sociais. Está na moda gostar dessa visão do amor. Que tenta copiar alguns traços dos mestres mas que os copia mal e porcamente, borra a tinta toda, mas encontra destinatários com a visão tão baça que nem dão por isso. Dantes havia o condão de ficar preso às letras do Shakespeare, do James, do Cummings e de tantos outros. Todos eles vieram por aí fora, ainda há bem pouco tempo dava para jogar à macaca com o Cortázar, mas está tudo a trocar a macaca por meia dúzia de macacos, que ap

Reset

00:00 Os números piscavam a vermelho no fundo escuro. O escuro era da noite por fora, por dentro a culpa não era da noite. Ou então era de noite também por dentro. Dentro da cabeça uma pulsação contínua, um incessante martelar, uma inequívoca prova de vida e um considerável incentivo à morte. O dia rodava dentro da caixa craniana a uma velocidade superior àquela com que camisolas, calças e roupa interior dançam dentro da máquina de lavar roupa. As ideias misturavam-se de tal modo que apenas se conseguia lembrar da receita de um bolo. As preocupações de ontem a fazer de farinha, o que de novo aconteceu nesse dia mascarado de fermento, todos os planos para amanhã e depois com cara de ovos acabados de deslizar casca fora. E a vida, essa batedeira eléctrica de último modelo, a tratar de misturar tudo com a pressa de quem tem fome e gulodice. Sorriu no escuro e sentiu felicidade por sentir os músculos da face a relaxar. Uma das melhores coisas que o sorriso tem é a capacidade de pôr as

Tropical

Era a primeira vez que punha os pés em St. Lucia. O nome trazia-lhe algo da infância. Ainda se lembrava bem de quando tinha tido aulas de órgão (e de quantas piadas infantis tinham sido feitas a esse respeito durante anos a fio) e uma das primeiras músicas que tinha aprendido a tocar era a St. Lucia. Lembrava-se também de como a semelhança entre as palavras órgão e oregão permitiram horas e horas de imaginação a fluir no sentido de não chegar a lado nenhum. Esta St. Lucia tinha menos melodia mas muito mais harmonia de águas verde esmeralda e colinas verde não esmeralda. Mal se saía do avião o bafo tropical dava as boas vindas quase com tanta vontade como o cocktail tropical que o esperava na zona de recolha de bagagens. Na verdade a bagagem vinha quase vazia, é a melhor parte de viajar para sítios onde o único frio é o do balde de gelo onde se guardam as garrafas de vinho branco. A viagem de táxi até ao hotel foi tão cheia de percalços como a vida de um técnico oficial de cont

O vestido

A noite era ainda uma criança, daquelas crianças que têm idade para ver bonecos animados na televisão e não têm idade para votar, quando toda a sala tinha ficado boquiaberta com o seu vestido. O vestido tinha sido passado de geração em geração, ninguém sabia muito bem a sua origem no tempo, no lugar ou na pessoa. Era um vestido pouco orientado, mas que desorientava. Tinha cheiro a Cleópatra e reflexos de Helena de Tróia. Contava a lenda que a primeira pessoa a usar o vestido tinha sido a Rainha do Reino de Muito-além-mais-além-do-que-a-vista-alcança, no dia do anúncio do noivado do seu filho, o Príncipe Eduardo, que tinha o cognome de "O Conquistador", não pelas suas proezas militares, mas sim pela sua vida de boémio. Voltando a um passado menos pretérito e mais presente, a entrada dela na sala soltou as mais variadas exclamações. Encarnado e dourado dançavam no seu corpo como dois dançarinos exímios de tango dançavam numa sala escondida de um qualquer bairro de Buenos A