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A mostrar mensagens de 2014

Sliding Doors

Assim que abriu a porta sentiu o cheiro do perfume dela. As moléculas atravessavam todos os recantos da sala, saltavam do pescoço dela, atravessavam as partículas feitas do mesmo pó que as estrelas, para se irem alojar nos sensores olfactivos do seu nariz, refinados durante anos para saber distinguir o agradável do nauseabundo, bem como tudo o que está pelo caminho. Os cabelos dela brilhavam como se tivessem sido tocados pelo Rei Midas. Deslizavam pelas costas, lembrando-lhe a cor com que fica a encosta inclinada de uma montanha naquele lusco-fusco que se precipita ao pôr do sol. O nariz dela tinha as proporções perfeitas de uma rainha do século XVIII e era empinado o suficiente para lhe dar o ar de quem sabe por onde vai. Os seus olhos estavam, com certeza, nos lugares cimeiros da lista dos olhos mais bonitos do mundo. Tinham tanta vida, pensou ele, eram da cor que resultaria do acasalamento do azul turquesa com aquele verde dos lagos da Croácia. Tinha a capaci

ódio à primeira vista

a história do amor à primeira vista dá imenso jeito a argumentistas, escritores ou outros criativos, mas em geral é quase tão verdadeira como a teoria de que tudo se consegue se se acreditar com muita força que lá se vai chegar. a atracção à primeira vista sim. essa existe. e é capaz de ser das poucas forças que ultrapassam a da gravidade, mas não me vou alongar sobre o assunto ou ainda sou humilhado por gente que perceba verdadeiramente do segundo assunto. mas o amor constrói-se. o amor compra-se e vende-se, não que estejam em causa trocas monetárias. embora às vezes, quantas vezes, ó se. e não falo do amor só no seu conceito tradicional. falo também do amor pelas coisas. do amor pelas pessoas. da admiração. há o click inicial mas depois há horas e horas de enamoramento com a obra da admiração, com as palavras, com os frames, com os takes, com as pinceladas, com os olhos, com as pestanas, com os contornos da cintura. tudo demora, tudo é um processo, tudo cresce, exponenci

fénix

cleveland devia ser um case study por vários motivos.  era uma cidade que concentrava grande parte da riqueza do midwest americano. " desconhecidos" como o j.d. rockfeller eram daqui e começaram a construir os seus impérios a partir daqui. a cidade foi quase ferida de morte com o encerramento de grande parte da indústria e viu os postos de trabalho fugirem para outros lados. mas nunca morreu e vários visionários viram na crise uma oportunidade. hoje em dia é um dos mais importantes polos medico-científicos do mundo. tem um dos mais importantes portos dos estados unidos, sendo o único porto da região dos grandes lagos com transporte directo transatlântico. no desporto tem dos maiores períodos sem qualquer vitória nas principais competições, mas no meio disso tem dos adeptos mais leais do país. por isso é que sentiram a partida do le bron para miami como se de uma traição conjugal se tratasse. por isso é que o odiaram de morte. como o ódio e o amor estão em extremos que se t

sobre os lugares

perguntou-me sobre o taj mahal e eu falei da história de amor por trás da sua construção. perguntou-me se era imponente visto de longe. eu respondi que sim e falei dos guias turísticos de ocasião, que ganham a vida todos os dias esperando do lado de fora do complexo por turistas, em busca de um valor fixo para trocar por histórias e por uma capacidade pouco mais do que tosca para tirar fotografias de grupo. perguntou-me pela grande muralha da china, a única obra do homem que se avista da lua. confessei que essa história era mito, mas que em compensação podia garantir que se via lindamente a lua da grande muralha da china. quis saber mais da grandiosidade das torres e das muralhas. falei-lhe do tipo que encontrei numa dessas torres, no ponto menos turístico da muralha que se possa imaginar, a três ou quatro horas de caminho da aldeia mais próxima, que para ali vai todos os dias à espera da meia dúzia de aventureiros que ali passam. a ideia é vender-lhes postais mas acaba por lhes e

pedido

uma vez o vencedor de um prémio nobel pediu-me que lhe escrevesse o discurso de vitória do prémio. na verdade quem me pediu que lhe escrevesse o discurso foi um candidato a primeiro-ministro. confesso que não foi bem assim, o que me pediram foi que escrevesse uma carta para sensibilizar as populações para a importância da vacinação. minto, pediram-me foi se podia enviar uma carta registada para a companhia da electricidade para cancelar o contrato. agora que penso bem nisso, o que se passou foi que me pediram que escrevesse o meu número de telefone num pedaço de papel, e o meu sorriso foi tão grande como se estivesse a escrever o discurso de um prémio nobel.

vai correr tudo bem

ela deu-me a mão e disse: - vai correr tudo bem. peguei na mão dela, segurei-a alto e perguntei: - mas não vais precisar da mão para mais logo?  - não, ainda tenho a outra, podes ficar tu com essa. - mas vê lá bem se não precisas mesmo. é uma mão tão bonita. tem as unhas pintadas e tudo. até me sinto mal de a aceitar. - a sério. faço questão. fico com a esquerda porque sou canhota e tenho de a usar no volante, mas o meu carro é de mudanças automáticas, por isso podes ficar descansado e levar a mão direita contigo. parti sossegado com a mão direita no bolso, meio escondida com medo de ser apanhado ao passar na segurança. dito e feito. assim que cheguei ao primeiro guarda, ele franze o sobrolho e pergunta: - o que é que traz aí no seu bolso? - ah, senhor guarda, isto é uma mão que me emprestaram. - e a mão tem líquidos? - já não, senhor guarda, tinha um bocadito de sangue, mas foi caindo pelo caminho. - e para que é que o senhor quer essa mão? - ainda estou a

há vírus piores

o sobressalto, o amontoado de membros da imprensa à porta de unidades hospitalares, os artigos dos especialistas, os alarmes da população, as lágrimas prematuras, as insónias precipitadas. todos temem um vírus de que ouviram falar, todos se debruçam sobre os relatos míticos daquilo que o vírus faz a um corpo, de como o destrói de dentro para fora, de como é incurável, de como não há nada a fazer. no meio disto tudo, o sítio de onde o vírus veio tem vários problemas bem mais graves de que ninguém fala. os que estão do lado do medo de que ele chegue consomem os seus dias com a preocupação. esquecem-se de que vivem no meio de vírus bem piores, que consomem corações que nem canibais esfomeados, mais tóxicos do que material radioactivo e mais instáveis do que uma falha sísmica. esses comportam-se como areias movediças da alma, como cavalos de tróia da paixão, dão conta do visível e do invisível e ainda se vangloriam no final, como se a auto-proclamada vitória não fosse inerente à s

time warp

acordou com o som da chuva a bater no tecto do prédio. correu ensonado para o duche, seguido das estrelitas com leite. pôs a mochila, com três vezes o seu peso, às costas e calçou as galochas. saiu porta fora e sorriu ao avistar a primeira poça. atravessou-a feito navio de cruzeiro e sentiu o poder da borracha impermeável e colorida. saltou dentro da poça seguinte enquanto se imaginava um astronauta a brincar na lua. pensando bem sabia ter lido que a lua não tinha água. começava também a duvidar que os astronautas pudessem brincar, a vida dos adultos parecia dada a coisas demasiado sérias durante demasiado tempo. nada disso importava, contudo, porque aquela poça era aquele momento e os adultos eram os adultos, mais liberdade ficava para as crianças. acordou com o som da chuva a bater no tecto do prédio. tropeçou do quarto até à sala onde acendeu um cigarro e bebeu de um trago o resto do whiskey que sobrava no copo da noite anterior, enquanto atirou a garrafa vazia na direcção do l

there she goes

o sol ainda vai alto mas a lua já quer dizer olá. o volume é quase tão alto como ficará mais tarde, mas ainda se mistura com o nevoeiro das leveduras e com a entrada de gente que parece pouco mais do que formigas num carreiro.  ela salta do nada, sorri e corre na direcção do abraço que marca mais do que mil volumes de romances russos. com menos tragédia, sangue e lágrimas. enrola-se no abraço, rebola pelo resto da noite, perde-se em rimas de língua estrangeira, poesia disfarçada de tempos modernos e de batimentos que entornam ritmos em cima da mesa que é a vida. um casal aparece e acena a dizer que sim. o sol já se escondeu a oeste, mas a lua sorri. são dois num. são sorrisos transformados em hiper-sorrisos e sangue que corre pelas veias como se fosse o coelho da alice. a paixão traz sempre a pressa que a vida não tem. o sangue apressa-se a querer ser mais do que acha que consegue alcançar. os dias passam, os vasos abrem, os glóbulos passam. os vermelhos, os brancos, os cor de

o homem que olhou para cima

seguiu pela avenida, mastigado pela multidão, avançando num passo certo e rítmico na direcção do seu trabalho. o ano era várias centenas de anos à frente do ano que se pensa que era. havia algo que hoje o inquietava. tinha lido na noite anterior um livro electrónico em que os autores falavam de grupos de pessoas, no passado, que se juntavam à noite, num lugar com pouca luz, para olhar para o céu e ver as estrelas e um ou outro planeta. segundo o relato eles olhavam directamente para o céu e isso deixou-o estupefacto. ninguém sabia dizer quando, mas a coluna cervical dos seres humanos tinha evoluído já há muitos anos para uma posição que apenas lhes permitia olhar na direcção do chão e ligeiramente em frente. se se tentassem deitar de costas, ou olhar para cima, perdiam automaticamente os sentidos, por compressão da espinal medula. o pescoço tinha evoluído neste sentido após anos e anos de indivíduos que passavam dezasseis a vinte horas do seu dia a olhar em frente, ou para baixo,

são tudo perspectivas

' i try to lead as normal a life as possible, and not think about my condition, or regret the things it prevents me from doing, which are not that many . physics can take one beyond one’s limitations, like any other mental activity . the human race is so puny compared to the universe that being disabled is not of much cosmic significance . ' - stephen hawking

erro padrão

o erro padrão é o desvio padrão da distribuição de amostragem de uma estatística. o padrão dá para muita coisa, desde comemorar descobrimentos até descrever o aspecto de uma camisa ou de umas cortinas. o erro dá ainda para mais. quando somos tão crianças que nem nos lembramos, o nosso processo de aprendizagem mexe-se à base de tentativa/erro. descobrimos que pôr a mão em algo que está a ferver dói, que a água fria não é a melhor coisa do mundo num dia de inverno e que nos reconforta estar ao colo de um ser humano com várias vezes o nosso tamanho. vida fora vamos definindo padrões. vida fora vamos ainda mais explorando o erro. deixamos de o ver como uma ferramenta para crescer e passamos a penalizá-lo e a demonizá-lo. perdemos a inocência crua de quem reage e ganhamos a capacidade de complicar e sobrepensar todos os erros. elevamos a fasquia mais alto do que o recordista mundial de salto em altura e não toleramos a falha, não nos damos nada bem quando descobrimos que pôr o

eu sei

eu ia a correr floresta fora quando senti o vento vir floresta dentro. as árvores entraram em tumulto, as folhas começaram a revirar-se, os troncos a lutar para ficar junto ao chão e o céu ficou escuro como breu. veio uma nuvem, depois outra, encavalitaram-se entre si e começaram a descarregar electricidade como se fossem uma central energética. os raios caíram por todos os lados, a vida parecia um jogo de plataformas para game boy em que de repente me tinha tornado na personagem e o criador do jogo em sádico controlador do meu destino. corri até ao que vi de mais parecido com um abrigo, uma gruta com pouca luz. entrei nessa gruta e senti um conforto que o freud explicaria em três tempos. explica-me muito o freud, sempre que tomamos café sexta sim, sexta não. não explica tudo, mas apenas porque percebe pouco de bola. a gruta protegeu-me nas horas seguintes. o mundo lá fora mudou sete vezes e na minha face o sorriso de conforto passou a riso sardónico de vitória. foi nessa altu

estou farto de quem está farto dos dadores de lições

a esclerose lateral amiotrófica (ELA) é uma doença horrível. sem causa aparente, tirando meia dúzia de casos com base genética e uma ou outra suspeita pouco confirmada, aquilo que começa por uma fraqueza ou por uma atrofia muscular progride, a velocidades diferentes consoante os casos, para múltiplos defeitos neurológicos impossíveis de imaginar, culminando quase sempre numa paralisia completa, com incapacidade de andar, de mover pouco mais do que os olhos e de respirar. outro dos grandes problemas, o maior de todos eles, é que não tem cura. tirando um fármaco que prolonga a sobrevivência (muitas vezes prolonga nas condições  acima descritas), não há terapêutica capaz de inverter o curso da doença. como todas as doenças que não têm cura, a ELA requer, com a urgência possível, que mais investigação seja levada a cabo, que mais fundos sejam investidos, que mais gente se entregue de modo dedicado à causa, para que eventualmente um dia se consiga chegar ao tratamento da doença. li

aventura

ela deixava-lhe mensagens escondidas em desenhos, rasgados nos cantos e reunidos nos meios. ele deixava-lhe mensagens à vista no lado dos planetas que dá para o sol. toda a gente conseguia em teoria ver o que lá estava escrito, mas, na verdade, só com uns óculos muito especiais é que dava para descodificar a mensagem. queriam dar as mãos mas era particularmente difícil porque ele vivia dentro de uma bolha e ela dentro de uma bolha vivia. a bolha era transparente, mas atravessá-la era de todas as cores. apareceu de repente o árbitro, abriu o livro das regras e queixou-se do uso abusivo dos advérbios de modo. aparentemente, digo, de modo aparente, a queixa era sobre a conversa, não sobre o que vinha escrito nos planetas. mais tarde explicaram ao árbitro que os planetas tinham por lá coisas escritas e ele ficou fora de si, achou tudo aquilo meio ilegal e quis fazer queixa às nações unidas ou a um representante de um qualquer governo civil. só se acalmou quando lhe trouxeram a

meio vivo meio alive

quis a coincidência das datas da minha passagem anual por terras lusas que este ano eu conseguisse ir ao alive. é melhor chamar-lhe só "alive" que a confusão entre optimus e nos ainda gera alguma guerra civil. tenho dificuldade em definir o meu festival favorito em portugal, porque todos têm coisas que me agradam. o sudoeste é imbatível na localização em plena costa vicentina, o super bock super rock costuma ter dos meus cartazes favoritos e também tem a praia do meco por perto, e o alive tem uma localização também ela fantástica, que permite fazer vida de lisboa durante o dia e no pos-festival, e assistir a uma data de concertos com vista para o tejo. sendo que estes festivais são para todas as idades, uma boa forma de não irem para lá a sentir que são velhos é irem vestidos de uma forma que não vos faça parecer velhos. no primeiro dia, por circunstância de outras voltas, fui para algés de camisa branca, com ar de pai, e na fila de entrada para o festival perguntava

régua de felicidade

" és feliz? " se vos fizerem esta pergunta, o mais provável é começarem a patinar e gaguejar enquanto tentam responder honestamente. acabam por dar uma resposta remendada, feita às três pancadas, e isso acontece, acima de tudo, pela falta de coragem que temos para parar de vez em quando e pensar na resposta a esta pergunta. uns imaginarão a felicidade brilhando como diamantes, com postais de ilhas paradisíacas, águas claras e lagostas crepitantes a sair da grelha, enquanto vão polindo o brilho ao seu carro de luxo. outros cairão no pseudo-romantismo de abraçar uma felicidade primitiva, o amor e uma cabana, as estrelas tão bonitas lá no céu e para que precisamos do mundo e para que precisa o mundo de nós (até serem mordidos por um animal venenoso e irem a correr aflitos para o hospital). a felicidade propriamente dita é impossível de definir. é ler e ver e ouvir, para entender que há milhares de anos que gente que sabe e gosta de pensar se questiona sobre isso, se

as pessoas e a cómoda

a vida tem a mania de se compartimentalizar. são estados atrás de estados na infância, são fases atrás de fases na adolescência, são saltos de ponto para ponto na vida adulta. são muitos anos passados à face da terra (na verdade são sempre muito poucos) em que tanto pessoas como coisas fluem por nós. aparecem e desaparecem da nossa vida como incandescentes meteoritos quando invadem a atmosfera. para tudo isto, e sem ser por vontade própria, desenhamos dezenas ou centenas de gavetas, destinadas a cada um destes encontros vida fora. umas gavetas são abertas uma vez e logo fechadas para a eternidade. outras são abertas quando calha, e quando de lá salta a pessoa que ali esteve fechada anos a fio, é instantânea a corrente eléctrica que salta da gaveta para a nossa pele e acaba a aquecer o coração. outras gavetas há que trancamos a sete chaves e, ainda assim, vamos confirmar se não há hipótese de quem lá prendemos sair pela parte de trás do móvel.  penso muito na ironia das palavra

dar voltas à pista

hoje entrei no supermercado e um senhor de nobre idade fez-me sinal. precisava de ajuda para pôr o saco das compras ao ombro, porque problemas nas articulações o impediam de ter força e amplitude de movimento para conseguir completar uma tarefa tão simples. os dias passam no calendário como carros e pilotos a dar voltas à pista. as articulações gastam-se que nem pneus, a memória vai-se que nem combustível e as mudanças saltam freneticamente para cima e para baixo como se fossem estados de espírito. volta após volta vamos segurando a força dos Gs que nem uns corajosos, fingimos não notar o cheiro a queimado vindo das rodas e fintamos as poças de óleo que nem uns fitipaldis . esquecemo-nos com demasiada frequência de parar nas boxes . bem sei que a pista chama e promete glória, mas o reabastecimento é tão essencial como o músculo de feições estranhas que bate dentro do peito. sobre a pista que é a vida ninguém sabe bem o que é o pódio. mais uma razão para apreciar o caminho,

lição de hoje

se há coisa que aprendi bastante nos domingos de manhã da minha infância foi como a natureza funciona. também aprendi que a feira do relógio tinha um rico pão com chouriço e que cair em cima da cal dos campos de futebol pelados queimava a pele, mas isso talvez não tenha tanta importância para o assunto de hoje. bebendo pelos olhos todos os programas que o ecrã teimava em expulsar, fosse a vida selvagem inglesa ou o outro a esconder-se atrás de arbustos, aprendi várias lições que ficaram para a vida. uma delas tinha a ver com o padrão de acasalamento das zebras. as zebras, sejam macho ou fêmea, têm uma característica engraçada, a de perderem a atracção por uma zebra do sexo oposto que faça a corte a todas as zebras que se mexem (e mesmo a uma ou outra mais estática do que uma múmia egípcia). quando isso acontece, não só perdem a atracção como a cor das suas listas até se pode inverter. as listas brancas passam a pretas e vice-versa, é a forma que a natureza tem de metaforicamente a

take two

a música não era nada de especial. o vocalista parecia ter não álcool no sangue mas sim sangue no álcool e a voz tremia-lhe mais do que uma casa construída em cima do anel de fogo. a luz era morna, sobretudo comparada com a tua pele. falámos horas a fio de quão tudo é relativo, da temperatura das peles ao movimento dos girassóis atrás da estrela todo o dia. discutimos alegremente a falsidade do céu azul, pintado às escondidas para nos dar uma sensação de conforto. que não existe. que é inventado em becos cósmicos, como quem rouba um beijo enquanto um candeeiro se acende e apaga, incerto sobre a energia que lhe corre nas veias. ou nos fusíveis. uma das duas. fiz um esforço hercúleo para me concentrar nas palavras, enquanto a minha atenção se prendia nos teus cabelos, os meus olhos se enrolavam no teu pescoço e o coração dava pulos capazes de ir à medalha de ouro nos jogos olímpicos. as noites frias. as noites quentes. depende. tudo. depende tudo de tanta coisa. e no fundo d

o valor da opinião

eu ainda sou do tempo (já começamos mal) em que a opinião era uma coisa difícil de difundir. para ter tempo de antena num jornal ou para ter um livro publicado era preciso ter qualidade à prova de bala. ou uma boa cunha. mas apesar de tudo, em geral, o critério "qualidade" tinha tendência a prevalecer. num ápice veio esta maravilhosa democratização em que todos temos direito a blogs, podemos publicar livros de borla online e dão-nos colunas em jornais diários como quem oferece jornais de qualidade duvidosa no metro e nas filas de trânsito. uma coisa que tinha tudo para ser boa, abrindo o mundo a mais opiniões e pontos de vista, tem sido, na minha modesta opinião, um semi-desastre. e o "semi" é só porque pelo meio do imenso ruído se descobrem pessoas e opiniões de muito valor, que nunca teriam atingido a ribalta na apertada meritocracia do passado. mas para encontrar essas trufas é preciso escavar em tanta terra vazia que chega a ser desesperante. toda

bully de almas

há qualquer coisa com o sol a pôr-se e com o sol a nascer. eu tenho um stendhal constante com esses preciosos momentos, mas parece-me que o que me afecta é viral e contagia bem mais de meio mundo. são instantes passageiros mas que, como nenhuns outros, nos lembram dos ciclos, nos ajudam a re-centrar, nos afirmam duas vezes ao dia que continua tudo a girar e que o caminho é para a frente ou para trás, mas à volta do eixo pela certa.  já é de manhã. já é de noite. os pássaros carregam no play ou no pause consoante o evento. são muito mais ordenados do que nós, aqueles com a mania de andar só sobre as duas pernas e que não usam os membros superiores para voar.  o que é uma pena. seria tão mais fácil perseguir o sol com asas. com alguma distância, que não queremos soltar o ícaro que há em nós. mas ainda não perdi a esperança de passar mais de vinte e quatro horas atrás do sol (embora já tenha andado bem perto disso, mas com ajuda de motores não conta). estou a desenhar

ardente

a facilidade com que os dedos se entrelaçam. a dificuldade com que os dedos se soltam. lembra-me o momento em que as forças centrífugas brincam com as centrípetas e rodam que nem crianças a brincar no jardim. os dias passam, as páginas viram uma a seguir à outra, a tinta sangra da esquerda para a direita (noutros lados da direita para a esquerda), mergulha nas linhas, salta entre elas, rasura o fim e recria o princípio. são lágrimas de preto misturadas com lágrimas de branco. fazem das linhas pautadas música e crescem como o 1812 do tchaikovsky. deixam o barco do pedro para trás, grande ou pequeno, atravessam a ponte. sentam-se nos degraus a olhar para o cristo salvador, sem perceber se a cúpula dourada os salva ou se salvam eles a cúpula. atiram-se ao rio. fogem para norte. param. olhos claros. parar. observar. lábios cheios. lua também. cabelos longos. sempre os cabelos longos montados em pescoços ainda mais longos e capazes de derrotar impérios. mais cúpulas. mais t

inversão

o sol entrava decidido pelas frestas das persianas, teimando em desenhar sombras chinesas, exércitos de luz, outrora de terracota, agora de claridade. enquanto os fotões traziam a imaginação à parede, a minha mente andava perdida por outros mundos, a anos-luz de distância. era como se fosse hoje. entrei pela porta verde, com as letras pintadas a branco, de fresco, fiquei até com um ou dois dedos sarapintados, e as teias de aranha faziam adivinhar que do lado de lá se encontrava um tesouro daqueles que demoram séculos a descobrir. o baú tinha um código, mas era fácil de descobrir, 083, era estranhamente evidente. enquanto rodei a combinação, senti um largo sorriso no escuro, atrás de mim. por segundos tive a certeza de ter por perto o gato da alice. só que este país tinha poucas maravilhas e a pressa era muita para chegar ao conteúdo do cofre. sacudido o pó, e ultrapassado o ataque de tosse da praxe, vi por fim a garrafa e o líquido túrbido no seu interior. tinha cor de ser vítima

a vida tem muito de tomb raider

a lebre saiu disparada de tal forma que era quase garantido que ia bater recordes. superou-se com os gritos vindos das bancadas, com o bruá de satisfação de todos os espectadores, com a espectacularidade do seu avanço. a lebre chegou primeiro a quase tudo. na vida, como nas corridas de animais em fábulas, há tendência a ligar o sucesso (pessoal, profissional, o que vocês quiserem-al) ao imediatismo com que a ele se chega. o ' depressa e bem há pouco quem ' passou de moda numa época em que o foco em qualquer assunto ou objecto dura segundos e a pressa se entrelaça com fios de stress ao longo de qualquer dia da semana. não vale a pena. somos crianças com pressa de chegar a adultos, para depois vir a pressa de ser adultos mais completos, de acelerar em direcção a um sucesso que muitas vezes não parámos sequer para definir ou entender. hipotecamos o presente em função de um futuro que será ele também um presente hipotecado. a menos que paremos a espaços, que nos sentemos n

visto isto

estou maravilhado com a ideia de atribuir vistos gold para viver e trabalhar em portugal a tudo o que é talento e artista e investigador e não sei quê. os meus olhos ficam irrigados de lágrimas só de imaginar o influxo de actores birmaneses, cientistas norte-coreanos e anões polinésios, que de repente vão dar outros mundos ao mundo nesse rectângulo onde todos querem habitar. custa-me que os vistos gold fiquem por aqui. deviam ser estendidos a mais actividades e mesmo aos animais (os de quatro patas). é enternecedor imaginar a beleza de elefantes quenianos a andar livremente pelos arredores de arraiolos, anacondas felizes em alcochete e gorilas gaboneses em êxtase no vimioso. por outro lado, lembrei-me de repente de um livro muito jeitoso do tio patinhas, onde vinha a dizer que "nem tudo o que luz é ouro". espero que quem se vai atirar de cabeça aos vistos não fosse adepto na infância de ler bonecos da disney, ou ainda acabam a ter de fazer um downgrade dos vistos pa

congelados

congelaram primeiro umas poças de água manhosas que estavam ali à saída do restaurante chinês. depois congelou a berma da estrada, catapultou-se o lago dos patos e logo se seguiu o lago que se vê do céu. dos satélites. da lua, com uns bons binóculos ou com um telescópio daqueles que eu queria sempre pelo natal. quando dei por mim estavam esculturas de gelo penduradas em ramos de árvore. o artista não recebeu comissão, trabalha barato e mais por vontade própria do que por necessidade de fama. dei a volta ao quarteirão para procurar a bilheteira, porque sou inimigo de entrar à socapa, mas não encontrei quem cobrasse a entrada. só um esquilo, pendurado num cabo da luz, a olhar para mim enquanto trincava uma bolota. fiquei um bocado a pensar no que é que ele estaria a pensar de toda esta cena, porque sei que os esquilos são animais bastante pensadores. mas os olhos dele estavam no horizonte e tinha um ar sonhador, o que me fez duvidar da legalidade daquela bolota. mergulhei os pés

grande falha, mas vou a tempo de corrigir .

num escândalo dos mais graves que a humanidade jamais viu, esqueci-me de registar aqui a data exacta do aniversário dos dez anos deste vosso humilde blog que vos serve. eis o post original de 11 de janeiro de 2004 muita água passou debaixo da ponte desde então e ainda mais sangue passou pelo meu (e pelo vosso) coração. é incrível o quanto a minha vida mudou de 2004 para 2014 e as diferenças de rumo que entretanto se verificaram. não só na minha vida como no tom da escrita do próprio blog. essa incerteza da vida é provavelmente um dos seus mais belos motores. apesar de a regularidade andar mais baixa do que o fundo da fossa das marianas, vou continuar a exercer o meu direito de tentar continuar a ser "oranginal", now and then, e agradeço a todos os que por aqui têm passado e me têm lido ao longo destes dez anos. continuem a aparecer, são todos bem-vindos e não há consumo mínimo.