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A mostrar mensagens de 2013

ondas

o som das frestas meio abertas nunca me impressionou grande coisa. cheirava a pôr-do-sol e às ondas dos teus cabelos, enquanto as outras ondas saíam da rádio e o maurice chevalier cantava sobre rouxinóis e o amor. depois continuava num tom mais lento a falar sobre o mesmo tema. os rouxinóis esvoaçavam pela luz ténue e ríamos de alegria ao lembrar o dia em que a televisão voou janela fora e o tempo entrou feito tornado janela dentro. baptizámos o barco com a garrafa de veuve, sem acelerar o passo, a ver as nuvens esperar pacientemente. lembras-te como as nuvens se vão juntando a pouco e pouco, fingindo que são formigas num carreiro, meio confusas sobre a altura certa para atirar baldes de água cá para baixo? já longe da costa, perto do nada, mas como quem vai a sair para o tudo, ficámos a ver chover e atirámos os remos na direcção da água. decidimos que o acaso ia decidir onde o barco ia parar, adorávamos fazer de conta que éramos uma gigante mensagem-numa-garrafa. que fazia se

décadas

lembro-me bem que, por circunstâncias variadas da vida, aos dez anos tinha uma ideia clara (por mais estranho que possa parecer) do que queria ser e de onde queria estar aos vinte anos. com toda a dificuldade que uma previsão dessas implica, o engraçado é que aos vinte anos estava quase por completo nesse plano imaginado ou idealizado dez anos antes. chegado aos vinte (assim até parece que só penso o que quero fazer da vida de dez em dez anos, eu sei) voltei a fazer o exercício de tentar perceber onde queria estar dez anos depois. desta vez acho que falhei redondamente e a vida encarregou-se de me ensinar que quanto mais se cresce, pessoal e profissionalmente, mais difícil se torna tentar domar o nosso destino e muito mais factores entram em jogo do que no conforto e linearidade da infância e da adolescência. porque esses tempos são fundamentais na formação da personalidade, sem dúvida, e têm, como é amplamente descrito mundo fora, vários períodos de turbulência e de ultrapass

era noite

nunca ficou bem claro onde é que tínhamos deixado a nave estacionada. eu achava que tinha sido atrás dos arbustos nas dunas, mas tu insistias que tinha sido mesmo ao pé do mar. bem diz o ditado que à noite todos os gatos são pardos e aparentemente todos os extraterrestres perdem o sentido de orientação. quando entrámos no bar da praia ficou tudo a olhar para nós com um ar esquisito. achei aquilo digno de alguma falta de educação, mas, em defesa das pessoas que ali estavam, não deve ser habitual verem entrar porta dentro dois seres com cinco braços e dez pernas. já seres sem cérebro vêem com frequência, mas isso fica para outra conversa. lembro-me do teu ar irritado por termos dado tanto nas vistas. eu ia jurar que tinha analisado ao pormenor a civilização humana e que bastava ter umas havaianas nos pés para passar despercebido na multidão. lembraste, e bem, como sempre, que umas havaianas talvez ajudassem, mas ter cinco pares calçados cheira a esturro. ficou ainda um silên

as formigas falam muito nisso

talvez seja o facto de a data que comemora os meus trinta anos de pulmões funcionantes (com alguma ironia, porque na primeira década tive uma asma de difícil tratamento e dei mais trabalho e sustos aos meus pais do que um tamagotchi nervoso) se estar a aproximar, talvez seja do tempo que aqui não se decide se quer continuar a brincar ao outono ou se se fecha de vez no inverno, ou talvez seja até do alinhamento das nuvens com os planetas e com a porta do meu prédio, seja a causa a que for, esta aproximação a um marco histórico tem trazido à superfície o meu eu mais existencialista. apesar das muitas coisas que fazem pouco sentido vida fora, enquanto as linhas das páginas dos meus cadernos me continuarem a sorrir, o fumo da mistura de chá verde com chá oolong continuar a sair aos pulos da caneca e as formigas me continuarem a contar o seu dia-a-dia e quantos grãos de açúcar conseguiram transportar, as coisas podem continuar a fazer muito ou pouco sentido, que explorá-las, por si

sonho

Sonho por vezes que não tive de abandonar o meu país. Que pude continuar no conforto de quem conhece de cor o meu coração, de quem sorri com empatia a cada um dos meus gestos, de quem sabe baralhar os ingredientes que eu gosto e voltar a dá-los, num prato fumegante e devorável. Sonho que o meu país não é um sítio onde o apelido vale mais do que o mérito, onde se dá mais valor a títulos atrás do nome ou a palavras caras do que a sentimentos verdadeiros, seja a julgar papiros, seja a julgar uma vida. Não existem lugares perfeitos, mas existem alguns com mais escuridão do que o fundo de um poço em dia de lua nova. Sonho que o meu país não se deixou invadir por hordes zombies, sem qualquer pedigree intelectual, mas com a sobranceria de achar que o têm. Imagino (ou será que sonho? Ou que invento?) que estou sentado no muro que guarda a praia, a olhar o horizonte, alheado de todo o barulho atrás de mim (se calhar “absorto em pensamentos” fica mais bonito, mais pomposo, mai

silêncio sem inocentes

ainda bem que não faço promessas sobre a frequência da minha escrita, porque ultimamente anda tão frequente como a passagem do cometa X ou Y perto da terra. e cada vez que me lembro disso aperto o cilício. dava-me tão bem há duas décadas atrás no meu mundinho cheio de leitura e de escrita. isto de brincar aos adultos não tem piada nenhuma. isto de ter de se fazer porque tem de ser em vez de ser porque parece divertido devia ser revisto. aposto que na constituição da república terrestre há qualquer coisa que impede que o mundo nos consuma em vez de sermos nós a consumir o mundo. mas de cada vez que me aparece um destes protestos, em regime de velho marreta, vejo um esquilo passar com uma bolota na boca, olhar para mim assustado, convicto de que lhe quero roubar a bolota. e isso volta a fazer-me sentir o sangue quente a correr pelas veias, os olhos humedecidos de vida e a certeza de que mesmo cheio de pressões o mundo vale a pena a cada virar de esquina.

transparências

o mundo é um lugar em constante mudança. desde a primeira hora, do primeiro minuto e do primeiro segundo. é essa aliás a essência da sua criação. se as moléculas tivessem permanecido estáveis, de mão dada a olhar para a lua ou a apanhar sol numa esplanada, jamais teriam entrado em choque e dado origem, por exemplo, à vida. não sei se na origem do mundo existiam esplanadas. mas não tem grande importância para o caso. o que importa é que a rebelião entre elas degenerou numa bela sopa e a pouco e pouco tudo se foi orientando na direcção do que hoje somos e daquilo em que nos tornámos. das coisas mais apaixonantes das descobertas científicas modernas (o dicionário não reconhece apaixonante como uma palavra válida, alguém lhe dê um beijo bem dado) é perceber que a mudança até se consegue ir cunhando à medida que o próprio indivíduo avança, e que determinadas características que conferem vantagem selectiva são passadas à geração seguinte, algo que até há poucos anos se julgav

a porta errada

o prédio era estranho. não há portas de prédios com motivos de ferro em cor-de-rosa e com um olho dentro de uma forma triangular. ainda assim entrou porta dentro com a decisão de quem sabe ao que vai. ève charlier tentava demover pierre dumaine de abandonar o apartamento. ' você sabe que é muito muito perigoso. ' ' perdoe-me ève, sabe bem que tenho de ir. são os meus amigos. eles vão ser massacrados, ève, sabe bem que não a amo menos por isso! ' ouvem-se passos pesados nas escadas e, após uma longa pausa, alguém bate à porta com insistência. pierre voa para junto do móvel onde guarda o revólver, que rapidamente tira e aponta à porta. ' quem é e ao que vem? ' ' é do círculo de leitores! ' ' círculo de leitores? o que é isso, homem? aposto que é um enviado do regente! ' ' não, não, sou mesmo um enviado do círculo de leitores. faço toda esta zona de massamá. ' ' massamá? mas você não sabe que está às portas de pari

um, dois, experiência

dou por mim muitas vezes a pensar que o conforto da rotina retira alguma acutilância à capacidade de observação. fazer os mesmos caminhos, subir os mesmos degraus, repetir as mesmas tarefas, do alourar alho e cebola ao dobrar de camisas, permite-nos manter um padrão e entender a linha orientadora do dia-a-dia. a paz quase uterina que tudo isso nos traz (por mais que nos finjamos todos mentes hipercriativas e passemos o tempo a bradar aos céus que a rotina é um horror) é uma espécie de reset diário, um re-acertar dos ponteiros quando se encontram de novo ambos a zero graus e nas doze. sair do ciclo da rotina e dar um mergulho nas águas do desconhecido pode ser abordado de modos bastante distintos. pode-se optar por ir com o medo do que nada naquelas águas escuras. pode-se tentar mergulhar com uma armadura medieval vestida imaginando-se mais esperto que todos os possíveis monstros marinhos. pode-se, por último, mergulhar com a descontracção de quem quer descobrir e experimentar em

contrariedades

aprendi, entre outros, com o cesário verde a ter um gosto especial por olhar pela janela nas horas mais tardias da noite, perdendo-me em pensamentos que se misturam com luzes de um ou outro quadrado isolados na escuridão. são dezenas de janelas. são dezenas de vidas. são cortinas diferentes. são espaços abertos. vejo televisões que expulsam um arco-íris cá para fora. vejo silhuetas humanas. umas paradas, outras em leve e discreto movimento, dando fracas dicas sobre a pulsatilidade do coração que as abriga. não há fumo, neste sítio não há fumos nas janelas. e ácidos quando muito os da chuva, pelo menos na maior parte dos prédios, na maior parte dos dias. há luzes que se apagam. pergunto-me quem está lá por trás. se é o fim do dia. se é a desistência da noite. se quem carregou o peso de pressionar o interruptor vai agora passar horas e horas a fio em sofrimento insoníaco . mudam as janelas que têm luz. mudam as janelas que estão apagadas. não há simetria. nunca há simetria. não há

era uma vez

(homenagem ao la fontaine, adoro histórias com animais) era uma vez, num reino muito muito distante, longe de todos os outros (pelo menos na maioria dos indíces económicos), um sistema em que meia dúzia de gordos mandavam sobre milhares de magros. os gordos tiveram mais do que tempo para fazer dietas, mas nunca o fizeram. a vontade de comer gerava ainda mais vontade de comer e uma bola de neve fazia-os canibalizar mais magros, um a seguir ao outro. os magros, claro, passavam o dia a trabalhar para alimentar os gordos. por todo o reino gretavam as mãos na terra, suavam o sol na pele, trabalhavam, mais que de sol a sol, de lua a lua, e ainda assim tentavam manter o sorriso de quem está feliz. caíam no erro de acreditar nos gordos, que lhes prometiam mundos e fundos, quando, na verdade, para além de comer os magros, só se sabiam ajudar entre si. como se isto não fosse suficiente os gordos ainda viviam sob o signo da conspiração. na plena noção do mal que faziam aos magros, no medo c

sobre as várias paixões da vida

as primeiras imagens que escorrem nas paredes mais longínquas da minha memória são de fumo de bifanas, cheiro a cerveja entornada pelo chão, mão dada ao meu pai e olhos sempre para cima, curiosos como os meus não sabem deixar de ser, na busca de entender o porquê de tantos homens grandes vestidos de encarnado se dirigirem ao mesmo sítio da cidade ao domingo à tarde. depois, lembro-me de atravessar a ponte de pedra, de aguardar com paciência na fila para ser revistado, de atravessar as portas de ferro e de me avisarem para ter cuidado com o degrau. de subir intermináveis escadas até finalmente chegar ao cimo daquele amontoado de betão, cimento e ferro. trepar os últimos quatro/cinco degraus e sentir o meu pequeno coração a bater mais forte por saber que se estava a aproximar aquela visão magnífica de todo o estádio que só o terceiro anel permitia. o contraste de um relvado verde com bancadas impregnadas de vermelho. as torres de iluminação imponentes, a toda a volta. os bancos de pe

born slippy

mergulhou em direcção ao desconhecido como quem prefere conhecer a temer o desconhecido. sentiu o corpo tremer por todos os lados, uma espécie de vibração ainda maior do que a que o corpo sente durante um sismo de grau 'muitos' na escala de 'bem pior que richter e mercalli' juntos. lembrou-se que richter lhe fazia lembrar ritter, nomeadamente ritter sport, o de maçapão, ou outro semelhante, do melhor que pode aparecer sob a forma de chocolate servido ao quadrado. quando a vibração ganhou contornos de normalidade deixou-se finalmente levar pelas cores. só enquanto se mergulha no desconhecido se tem por instantes a percepção de que há mais cores do que oitenta e três arco-íris juntos e de que a vida é pintada como se de um caos de guaches se tratasse. conseguiu distinguir as cores pintadas a lápis, a tinta permanente, a tinta temporária e de todos os outros temperos. sentiu-se a ver estrelas e teve a certeza de que falavam com ele. que lhe contavam tudo o que havia pa

o anti-nihilismo do nihilismo

por muito que haja quem não o entenda é grande a ansiedade de quem renuncia a certas correntes de pensamento e se digna a concordar com outras, naturalmente com as que acreditam mais em não acreditar. o sofrimento do nihilismo, do ponto de vista do equilíbrio moral, é mais intenso do que a raiva de um diabo da tasmânia fechado num quarto sem carne para comer. as voltas na cama não são combatidas com conversas feitas de mãos unidas. os sofrimentos pelos que se ama não são combatidos com mais um furo de aperto no cilício. a expiação dos males não é feita sacrificando um aleatório indivíduo para dentro de um vulcão. nos momentos em que é suposto fazer força por algo ou alguém, o nihilista vive o drama do astronauta em gravidade zero. tem a liberdade de escolher o que fazer da ausência mas a sensação de que pouco importa o que pode ou quer fazer do vazio. não regride e não desiste, mas não avança e não conclui. resta a crença no ponto zero. ou a não crença. a lembrança do trivial, do

meio limão meio homem

estive no outro dia à conversa com uma metade de limão e aprendi imenso sobre a vida. estava sentado muito bem no jardim, perdido nas intermináveis cores do pôr-do-sol, quando vejo que, como quem não quer a coisa, meio limão se senta a dois metros de mim. estranho, o jardim estava vazio. percebi logo que queria meter conversa. tinha aquele nervosismo típico de quem vira o olhar de repente para outro lado quando vocês olham naquela direcção, denotando a ausência de um plano de disfarce. sorri e acenei e vi logo que o meio limão interpretou o gesto como se eu fosse porteiro de discoteca e tivesse acabado de abençoar a sua ultrapassagem à longa fila de desesperados clientes. titubeou na minha direcção, como se fosse meio ananás e não meio limão, que os limões rebolam, não têm dessas dificuldades técnicas. "veja lá se não tenho aqui um caroço". fiquei estupefacto com o atrevimento do citrino mas lá abri uma excepção e fiz um biscate fora de horas. expliquei a naturalidade

o prom(etido) é devido

escorrem-lhe pingos de suor da amostra de barba, pelo pescoço, inundando de pequenas poças de nervosismo o colarinho da camisa. as borbulhas mal escondidas que brotam do rosto são como o sinal de proibição de entrada do lado de fora de uma base militar. sendo que o papel de prevaricador é aqui representado pela maturidade. as mangas do casaco descem por um corpo menos comprido do que elas, a gravata foi escolhida segundo critérios que apenas fazem sentido numa cultura que premeia a mistura selvagem de tons, a ombreira do lado esquerdo está suja de branco, de uma qualquer parede por onde se arrastou no processo.  ela tem a pose mais confiante de quem se acha princesa, nem que seja por uma noite, entalada num vestido feito para cinturas de abelha e não de zangão, ajeitando o seu cabelo arranjado horas a fio numa cabeleireira influenciada por anos e anos de visualização do dirty dancing e do grease. sorri para o seu príncipe. sabem ambos que são sapos, mas nesta noite são muito mais do

o dow jones e não sei quê

' compras-me um bilhete de autocarro? ' ' para onde vais? ' ' tanto me faz, só preciso de ir lá para dentro porque tem aquecimento. ' uma coisa terrível. este ano não podemos ir de férias para a riviera maya. isto da crise deixa-nos de rastos. é trabalhar, trabalhar, trabalhar e nem temos tempo para aproveitar esta vida tão curta. ainda no outro dia o meu mais novo me pediu este novo ipad mini e eu 'ó filho, ó filho', lá lhe tive de explicar que a altura não está fácil para ninguém e que tinha de continuar a brincar com o ipad antigo. claro que lhes custa. os colegas todos têm um novo e eles nada. os colegas continuam a ir de férias para as caraíbas, ilhas caimão ou que é, parece que o pai aproveita para ir lá ver de umas contas, e que anda muito ansioso com o destino que o dinheiro anda a levar. mas é uma maçada. ando sem cabeça para nada. tive de ir pôr o mercedes à revisão e fiquei três dias sem carro. andei de metro e vi que as pessoas andam mesm

diz ' tração '

cansei-me dos textos direitinhos porque estava imenso vento e não tinha mais forças para lutar. o coelho gigante cor-de-rosa estava mais do que de acordo comigo. achei um bocado estranha aquela atitude dele de não parar de se rir a cada pessoa que passava junto de nós no banco de jardim. levantei uma das minhas sobrancelhas num gesto quase digno de ser premiado com um óscar e perguntei-lhe o que tinha assim tanta piada. justificou-se durante uns cinco minutos. dos primeiros quatro minutos não vos consigo dizer grande coisa porque estava a dar trincadelas em cenouras gigantes e a mastigá-las enquanto falava. além de ser um gesto de pouca educação, dificulta consideravelmente que quem está a ouvir um coelho gigante consiga entender patavina do que ele está para ali a dizer. no último minuto (entre o final do quarto e o final do quinto minuto, portanto) explicou-me que as pessoas eram todas muito parecidas e que isso lhe dava imensa vontade de rir. parece que na outra dimensão, onde

ficamos à rasca sem metas

quem subiu à montanha mais alta? quem o conseguiu no menor tempo possível? quem o fez com as botas mais leves? qual o homem que foi até ao mais profundo que da terra se consegue alcançar? quem descobriu o caminho marítimo para a índia? temos um vício maior em estabelecer metas do que algumas estrelas do rock em pó de cores claras. a verdade é que dependemos do conforto de, pelo menos, saber para onde vamos. se o vasco da gama dissesse que ia só ao deus dará ninguém lhe financiava a viagem. se o joão garcia dissesse que queria subir até meio do evereste não havia cá bancos nem publicidades. o mesmo para tudo o resto. sem meta não há tanto lucro em fama. por isso subimos. por isso descemos. por isso tentamos ir mais alto do que já se foi e mais fundo do que alguém alguma vez possa ter imaginado. cilindramos o tempo na tentativa do mais, do maior, do que está para lá do que há e não paramos nem microsegundos para apreciar o que está entre o ponto de arranque e a meta. depo

os corações também respiram

tem a ver com o jeito como o cabelo te cai sobre os ombros. com as ondas que a tua respiração dispara em direcção ao meu agitado coração e o faz tremer, com aquela força da terra que treme para fazer chocar placas com placas e tectonicamente dar novos pedaços de mundo ao mundo. tem a ver com o teu sorriso, com tudo o que tem o teu sorriso, com a capacidade que o teu sorriso tem de me desarmar. o teu sorriso é como um exército que caça um homem solitário. por mais que ele fuja, por mais que finja que há vales desconhecidos e montes mais altos do que a visão alcança, acaba por ser preso como peixe em rede e saltar como quem quer fugir. mas na verdade aceita a captura. não são dentes, não são lábios, não é língua, é uma orquestra, são todos juntos, afinados, perfeitos, imperfeitos de tão perfeitos, o teu toque como maestro. copia-se demasiado no mundo. ideias, conceitos, modos de ser, modos de reagir, sorrisos fingidos, fingimentos sorridos, mimo, negações do que já de si negado estava,

nunca deixem de ler o livro só porque sabem que acaba mal

o senso comum (o bom senso, diriam até alguns) descreveria como natural que quando somos abordados na rua por um tipo, de ar mais ou menos suspeito, que começa na hora a declamar um texto treinado sobre todas as suas desgraças e como isso o faz precisar de um ou dois dólares (ou euros ou a unidade do sítio onde estejam a ler isto, sejam criativos, sim?) para voltar para casa/apanhar o autocarro/comprar uma sopa, a resposta imediata seja o habitual 'desculpe, não tenho dinheiro', seguido de um dramático virar de costas e ida à nossa vida. permitam-me discordar da atitude. permitam-me ainda tentar vender a ideia de que se aprende mais ficando do que partindo (desde que no limite do confortável, não me comecem já a chamar nomes com base em cenários que criam na vossa cabeça, estão muito reactivos hoje, vocês!). a cantiga do bandido raramente é acompanhada de violência. a cantiga do bandido é o método mais frequentemente usado pelo tipo que precisa de esquemas por algum motivo

o óptimo ser inimigo do bom

há um conforto quase uterino em se fazer aquilo que se é suposto fazer. seguir as linhas da vida como elas foram traçadas, tentar continuar gerações seguindo o que vem de cima, num ritmo igual ou melhor, e continuar gerações abaixo, trazendo ao mundo quem repita o quadro. com raras excepções é essa a vida que quase todos levamos, autómatos do carrossel em que nos puseram, com uma pseudovontade de mudar, escondida por trás do conforto de em vez disso simplesmente ficar. o risco é uma aversão aos nossos genes. fica bem assumir que se arrisca. é romântico afirmar que se mergulha de cabeça numa qualquer montanha russa ou que se muda a vida num segundo como se ela própria de uma montanha russa se tratasse. mas quase sempre esse é um risco calculado. o nosso calculismo não é diferente do do leopardo que persegue a sua presa ou do do elefante que se move em manada. a nossa tão brilhante (semi-ironia) razão até adensa a complexidade desse calculismo. depois há o salto no escuro. há a vonta

acreditar é logo um primeiro passo

não querendo correr o risco de me tornar um jean de la fontaine (até porque tenho 'jean' no nome, mas noutra língua), num destes dias de neve houve um esquilo que me deixou a pensar. vi o dito animal saltar de uma árvore para o meio da neve e andar ali mais de vinte minutos para um lado e para o outro, para cima e para baixo, em busca de comida onde claramente ela não existia. não questionando a inteligência do animal, que eventualmente se guiaria meramente pelo instinto, não deixa de ser enternecedor vê-lo a lutar por aquilo em que acredita. seja isso uma bolota ou uma posição sobre o que está mal no mundo.

corin hewitt

recomendo, quando vos calhar ' no caminho ', a obra do corin hewitt. sendo inicialmente canalizador, foi descobrindo ao abater paredes de casas para trabalhos de restauro que no interior das paredes se encontravam os mais variados objectos  possíveis e imaginários, desde malas com dinheiro, a quadros roubados, a livros, cartas de amor, e muitos outros. isso inspirou as suas criações, que pretendem mostrar várias histórias possíveis de ser contadas atrás de uma parede depois de retirada a tinta que nos separa de todo esse mundo escondido. MOCA Cleveland, Corin Hewitt:The Hedge

reciclar tempo de vida

tempo perdido é uma coisa que não existe. porque ele não se perde, quando muito consome-se. o que há é boas e más formas de utilizar o tempo que temos, esse que varia tanto, e que chega em demasia a uns e tanto escasseia para outros. um dos erros mais frequentemente cometidos é chorar a má utilização do tempo no passado. só esse tempo de lamento já é mais tempo mal gasto, por isso é sempre boa ideia sair da bola de neve quanto antes (não quero arriscar ver-vos no fundo do vale enrolados numa esfera com milhares de ramos de árvore, penso sempre no vosso bem). uma das principais resoluções que fiz, ainda bem pequeno, foi prometer a mim mesmo que ia aprender pelo menos uma coisa nova por dia durante o resto da minha vida. sendo que podem estender este conceito aos vossos âmbitos profissionais, pessoais ou metafísicos, oportunidades não faltam. o princípio está lá para tentar impedir que caia no marasmo. e mesmo nos dias em que o conhecimento de algo de novo parece não poder chegar de

por alguma coisa saímos da idade da pedra

sempre me intrigou o fenómeno do bife na pedra. imagino o homem pré-histórico, saído da sua caverna, sem grandes jornais para ler ou sites da internet para pôr as notícias em dia, a ter de passar o tempo a caçar (um misto de necessidade alimentar e diversão). não tendo ainda dado conta do fogo, terá havido um primeiro indivíduo com dentição mais sensível que se revoltou e disse "não! isto assim não! acho impossível ter de comer estes nacos de búfalo todos crus, eu não tenho dentes de sabre e o meu primeiro nome não é tigre!". vai daí, o indignado, descobriu que os calhaus do lado de fora da caverna, por volta do meio-dia, em dias de verão, estavam a ferver de uma maneira que queima pés. sentindo os seus pés a arder teve a brilhante ideia de colocar um naco de carne em cima desses mesmos calhaus e assim foi inventado o primeiro bife na pedra. ora, julgo, embora possa estar enganado, que depois disso já passaram uns quantos anos. não só foi inventado o fogo como até foi des

uma questão de prioridades

há muita coisa que me deixa indignado. mas uma das que mais indignado me deixa é a humanidade ter as suas prioridades todas trocadas. não consigo conceber que o homem já tenha ido à lua mas ainda não tenha tratado com cuidado um assunto de muitíssimo maior importância - o equilibrismo de café. se o meu objectivo fosse ser equilibristo-malabarista ter-me-ia inscrito no chapitô ou trabalhava no circo atlas em vez de ir tomar o pequeno-almoço a um qualquer café. fico sempre na dúvida se estou ali para tomar pacatamente a primeira refeição do dia ou para participar numa versão renovada dos gladiadores americanos. peço um galão, que chega todo garboso no seu copo alto, e pespegam com o dito num pequeno e ridiculamente instável pires. entretanto dão-me outro pequeno prato com um croissant em equilíbrio instável. pego nesses dois companheiros e inicio a desafiante prova de atravessar toda uma sala cheia de gente plena da sua fúria matinal, aquela raiva de quem tem pressa de ir fazer o que

tudo são puzzles

nunca fui dos maiores fãs dos tradicionais puzzles. por mais elevada que seja a inteligência espacial de quem num ápice consegue juntar milhares de recortadas peças, para no fim formar uma fotografia, a mim parece-me uma considerável perda de tempo, quando se conseguiria obter muito mais facilmente a mesma fotografia com menos luta. isto porque trezentas peças azuis, praticamente iguais, que correspondem, em teoria, a pedaços de "céu", podem ser um desafio, mas também podem roçar a tortura. o conceito do puzzle, no entanto, fascina-me. fascina-me porque acaba por ser uma metáfora de tudo aquilo que temos, fazemos e procuramos na vida. é a imagem de que tudo é formado por pequenas peças e que o nosso conhecimento de todas as coisas, palpáveis e não palpáveis, é muitas vezes essa fotografia final, que nas nossas naturais limitações não dá para obter logo de caras, e só juntando todas (ou quase todas) as peças é possível ter uma imagem mais clara daquilo que na verdade estamos

a insustentável estupefacção pela ausência de vidas extra

tive a sorte de crescer ao mesmo tempo que os vídeojogos cresciam. numa época em que o triunvirato da diversão, felizmente, se dividia entre bons livros, brincadeiras de rua e os referidos vídeojogos. dos livros não preciso de falar porque das maiores vantagens competitivas do mundo é saber e gostar de ler. se houver dinheiro compram-se, se não houver vai-se a uma biblioteca, mas não há qualquer desculpa (pelo menos para nós, os felizardos do mundo ocidental) para dizer que não se aprendeu mais sobre mais coisas porque não se teve oportunidade para isso. quando muito pode escassear o tempo, mas já há muito tempo concluí que o tempo (ou a falta dele) depende mais da forma como organizamos a sua qualidade do que da importância que pomos na sua quantidade. as brincadeiras de rua são outro pilar importante do mergulho nas nossas raízes animais. somos seres vivos nascidos da natureza e à natureza vamos parar. tornámo-nos tão brilhantes na engenharia das nossas vidas que nos fechámos

as ruínas

acho incrível a importância que é dada a tudo o que são castelos, templos, antas, dolmens, caras gigantes em ilhas do pacífico, etc., que se catapultam para fenómeno turístico porque são ruínas de algo que já foi grande. acho incrível sobretudo a nossa vontade de atravessar o mundo, e largar fundos, para tudo isso visitar, quando cada um de nós carrega no coração ruínas de si próprio e raramente as visita. o senso comum tende a achar que o que digo não é verdade, e que nos lembramos sempre, em sofrimento (então se formos portugueses o sofrimento é barrado com molho de hipérbole), de todas as coisas más que atentaram contra a vida desse nosso órgão tão importante. mas essa é só metade da história. em abono da verdade o que fazemos é olhar para as clareiras, para os prédios caídos, e para a imagem do que foi. e aqui falo da ilha da páscoa como falo do coração. falta-nos o exercício de re-imaginar o que era. olhar para os templos incas como se estivessem acabados de inaugurar e cheios

altas resoluções

tenho para mim que temos de ser mais drásticos nas medidas coercivas para controlar as resoluções de ano novo. a trinta e um de dezembro de cada ano vejo toda a gente a prometer que vai perder peso, que vai trabalhar e concentrar-se mais, e que vai fazer tudo e mais um par de botas para ter um ano melhor. trezentos e sessenta e cinco dias depois geralmente leio o mesmo, o que me faz acreditar que, das duas umas, ou isto é por ciclos (e as resoluções funcionam para os primeiros seis meses e vão ao ar nos seis seguintes) ou então a humanidade é dotada de uma espectacular capacidade de prometer que vai fazer coisas mas de um terrível deficit de vontade slash concentração para acompanhar tanto wishful thinking. (slash como em "barra", não como em guitarrista dos guns n' roses) várias coisas poderiam ser feitas para melhorar o prognóstico das resoluções de ano novo. calma. sei que por momentos acharam que ia sugerir aumentar mais dois ou três impostos e reduzir-vos os s