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A mostrar mensagens de 2020

o mundo pós-covid

querem saber como é o mundo seguro e bonito quando o covid não for mais do que uma triste memória? perguntem aos queixos deste mundo. nada está tão bem protegido, tão assegurado, como os queixos, que, dê por onde der o ajuste da máscara, estão sempre bem cobertos. bem sei que os cientistas vos avisam de que o coronavírus se diverte a entrar no corpo humano pelas mucosas da boca, do nariz e dos olhos, mas essa informação é decerto apenas mais uma das milhares de notícias falsas que por aí pululam, uma vez que a observação pela rua fora mostra que o povo, que tudo sabe, até porque andou na universidade da vida, já topou a pinta genética do bicho e é pela mandíbula que ele nos quer trazer infelicidades várias. estar a gastar tanto tempo e dinheiro na busca de uma vacina parece-me até uma patetice. há muito que já podíamos e devíamos ter redireccionado esse dinheiro para a criação de uns bonitos moldes, em várias cores, para tapar o queixo e, inclusive, ajudar a poupar as orelhas, que tal

depois

depois. há sempre um depois. temos de ir aqui, temos de jantar, temos de fazer isto, aquilo e mais não sei o quê.  o presente tem sempre o condão de soprar uma quantidade de tempo infinito, que permite tudo planear, sem data, sem certezas, porque a esperança média de vida vai decerto aumentar para oitocentos e trinta anos em breve, e depois de criopreservados seremos capazes de pôr a agenda toda em dia, mais década menos década. o depois é mais escorregadio que a calçada do combro barrada de manteiga mimosa. um dia atravessa-se a porta do quarto, umas horas depois atravessa-se de novo mas na horizontal e com uma eternidade para fazer planos que não se vão cumprir, não assim tão diferentes dos que eram feitos quando as aurículas ainda batiam em compasso alternado com os ventrículos. mais depois de amanhã, menos depois sem advérbio de tempo palpável, sem raízes concretas. a vida são dois dias, e de vez em quando troca-nos a volta e nem a um dia se lembra de chegar.

nobel da tábua de engomar

cheira-me que os inventores do prémio nobel tinham as prioridades erradas. médicos, físicos, químicos, economistas, escritores, sim senhor, tudo muito importante e tudo grandes génios, mas peçam a cada um dos vencedores para passar uma camisa a ferro e eu logo vos digo quem é o génio na sala. não há volta a dar, ao oitavo vídeo no youtube a tarefa parece simples. qual astronauta pronto a pousar em marte, ponho água, ligo o ferro, rodo o manípulo até ao algodão, tudo parece estar a correr como os vídeos prometiam e muito lentamente o grande momento aproxima-se. passado o colarinho avançamos para a parte da frente e aí tudo se começa a complicar. "houston, we have a problem". são dois ou três vincos, não parece nada por aí além. que botão é este? vapor? deve ser boa ideia. hm, em vez de vapor sai uma espécie de areia e agora a camisa está cheia de pintas. ah, o quê, tem de se limpar o sistema de ferro porque acumula resíduos? de repente a central de chernobyl ao pé disto parece

a liberdade individual

as liberdades individuais são uma coisa engraçada de debater, desde que ninguém viole as minhas, sendo que eu sou ao mesmo tempo quem as define e quem julga se estão a ser violadas. como tal, tenho o perfeito equilíbrio de poder ser eu a definir o que são as minhas liberdades, como são para ser usufruídas e o que as fere num alto-e-pára-o-bailismo de escandalizar os santos.  só que não. porque felizmente vivemos em sociedade, e, como tal, as liberdades individuais são definidas, de um modo mais ou menos democrático, em sede própria, e de modo racional, uma vez que eu confio muito no  manel do café para tirar uma italiana perfeita, mas não sei se ele achar que o fulano x, y, ou z, muito bem que é racista e xenófobo, "mas o que vale é que diz umas verdades", o qualifica com suficiente maturidade democrática para definir por si os portões do que cada indivíduo pode ou não fazer (ainda confio menos no fulano x, y, ou z, mas isso fica para outro dia, que a sopa está quase a precis

idade adulta

o sol começava a aparecer no horizonte, tímido, pintando o céu de tons rosa e laranja, enquanto tu descias pelo trilho, quase mais inclinado que a parte de cima do evereste. as tuas pernas reflectiam o mesmo tom laranja e a tua pele cheirava a mar. os cabelos, indecisos entre serem ondulados ou ouriços-do-mar, emanavam a alma das algas do dia anterior, e guardavam no seu interior os segredos mais profundos do oceano. olhaste para trás e sorriste, e o teu sorriso desarmou o planeta num microssegundo, foi mais poderoso do que se o não-assim-tão-pacífico anel de fogo resolvesse revoltar-se todo ao mesmo tempo, e fez o meu coração bater recordes na escala de richter. aproximei-me e contei quantos raios tinha a tua íris, e quantas cores diferentes lá moravam. cheguei à conclusão de que tinha mais raios do que pessoas há no mundo, e mais cores do que a caixa mais cara da caran d'ache.  nisto fomos atravessados pela realidade. o teu sorriso confirmava aquilo que era claro, ele era uma

arrefecimento global

Primeiro era o verbo, mas o  verbo insistiu vezes demasiadas, martelando tanto o complemento directo, que o sujeito não se quis mais sujeitar ao que quer que fosse. As veias secaram, sobretudo as pequenas, mas depois as médias e, por fim, as grandes, e todo o coração ficou chupado, parecia uma espécie de figo deixado ao sol durante oitenta e três anos e meio.  As raízes ainda se aguentaram uns tempos. Eram regadas todos os dias com uma mistela de amor e carinho que, nos casos certos, chega para suportar uma árvore, mesmo podre, durante anos a fio. No entanto, nem sequer no escuro do chão se aguenta tudo. Uma a uma, saíram e rastejaram em direcção a um ribeiro que passava ali perto, mas não se enraizaram o suficiente e um sapo que ia a passar de bicicleta acabou com o seu sofrimento de vez. Era um império falso, por isso pouca diferença fazia quem atropelava quem. O sapo seguiu os outros sapos, era um sapal que fazia jus ao nome. Deram todos as mãos, olharam o céu em uníssono e e