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Mensagens

quando me falta o ar

sei que ainda não sabes, porque ainda não tens idade para saber, mas há mais de trinta anos que me questiono sobre o que é a felicidade e como encontrar o mapa para lá chegar . procurei nos bancos de jardim, nos bancos da faculdade, desde casa até ao outro lado do mundo, de polo a polo, e nunca encontrei quem a conseguisse definir para mim nem quem soubesse que travessas tens de cruzar para dar de caras com o tal mapa .  sempre me pareceu que provavelmente a vais encontrar nas pequenas coisas, mais do que nas grandes . vais deparar com um mundo em que cada vez menos se liga ao que quer que seja e que se acha que ter é ser, que ter é saber, ignorando que um sorriso vale mais que estofos de pele e mãos entrelaçadas ao pôr-do-sol batem um relógio que reage ao toque e fala contigo .  soube finalmente há vinte e seis dias o que é a verdadeira felicidade e sei desde há vinte seis dias o que é verdadeiramente o medo . nunca pensei ir descobrir o que eram ambos quase ao mesmo te...

O tempo

O tempo que demora a escrever novos textos. O tempo que demora a arranjar tempo para sequer poder parar e pensar sobre o tempo. A roda que tritura, a dimensão imparável, que levou gregos, romanos, troianos, outros anos, todos a entrar em desespero, todos a escrever linhas sem fim, nunca muda, nunca pára, nunca dá tréguas. Enquanto vejo as nuvens carregadas a passar rápido no céu, acima dos altos prédios, numa pressa preocupada, penso em tudo o que o tempo traz. Penso nas tuas células a correr contra o tempo, a multiplicar-se por dentro de ti e a multiplicar-se por fora de ti para nos revelar o teu destino, para nos tentar explicar como vais passar o teu tempo. O tempo vai passar para ti, vai passar para nós, de uma ou de outra forma, e as nuvens aqui vão continuar, apressadas mas à espera de ver o teu riso, o teu choro, as tuas células, os teus orgãos, o teu amor.

Is anyone there ?

Um, dois, experiência. Um, dois, experiência. Pensei que a pilha do blog estava esgotada, desculpem a intromissão. Faltou pouco para estar um ano inteiro sem transbordar letras do papel para o teclado e sei bem que vocês não conseguiriam viver com tamanha saudade de ler tudo aquilo que nunca quiseram ler ou saber, por isso resolvi fazer uma pausa no meu desocupado quotidiano para vir falar de guardas nocturnos. Bom, na verdade não é bem dos guardas nocturnos que se trata, mas do respeito que lhes devemos. Ando há dias com os horários fora de passo, pareço aquele soldado que vai a marchar diferente dos outros todos e os pais choram de orgulho porque é o único que vai a marchar com o passo certo. Passei duas semanas a trabalhar só noites e a ganhar o tal enorme respeito pelos guardas nocturnos, não só porque são as únicas pessoas com que eu podia conversar durante a noite mas também por viverem a vida desfasada de todos os outros. Depois mudei para um horário muito melhor em que fina...

Contagem decrescente

10, 9, 8 e por aí fora, a contagem é conhecida e decrescente. Põe-se um traço artificial no calendário e faz de conta que passou mais um ano. "Como é que ele passou a noite?" "Menos mal, parece que não esteve muito agitado." "E o senhor esteve sempre aqui?" "Sim, estou a fazer turnos com o meu irmão, a minha mãe só pode vir durante o dia." "Infelizmente não tenho notícias muito melhores para vos dar, o coração continua muito fraco e a não conseguir compensar aquilo que anos de trabalho lhe fizeram, não há solução para o problema da válvula, os outros orgãos começam a dar de si. Estamos a tentar tudo o que podemos, mas infelizmente as coisas parecem estar a ir num sentido terminal." "Nós sabemos, nós sabemos... faz alguma ideia de quanto tempo lhe restará?" "É muito difícil de dizer, podem ser horas ou podem ser dias, se há coisa que o corpo humano nos ensina, à medida que a experiência se vai repousando nos ...

na moda

Está na moda escrever sobre o amor. O truque é pintar o dito de lugares comuns e adornar o produto final com duas ou três asneiras das pesadas para emanar pseudo-rebeldia. O conjunto de palavras é tão bonito e tem uma força tão positiva que o que está mesmo a pedir é para ser posto num rectângulo, acompanhado de uma imagem do pôr-do-sol/paisagem verdejante/gatinhos/silhueta de um ou dois corpos (riscar o que não interessa) e feito, está pronto a sair do forno para esse sufrágio universal que são as redes sociais. Está na moda gostar dessa visão do amor. Que tenta copiar alguns traços dos mestres mas que os copia mal e porcamente, borra a tinta toda, mas encontra destinatários com a visão tão baça que nem dão por isso. Dantes havia o condão de ficar preso às letras do Shakespeare, do James, do Cummings e de tantos outros. Todos eles vieram por aí fora, ainda há bem pouco tempo dava para jogar à macaca com o Cortázar, mas está tudo a trocar a macaca por meia dúzia de macacos, que ap...

Reset

00:00 Os números piscavam a vermelho no fundo escuro. O escuro era da noite por fora, por dentro a culpa não era da noite. Ou então era de noite também por dentro. Dentro da cabeça uma pulsação contínua, um incessante martelar, uma inequívoca prova de vida e um considerável incentivo à morte. O dia rodava dentro da caixa craniana a uma velocidade superior àquela com que camisolas, calças e roupa interior dançam dentro da máquina de lavar roupa. As ideias misturavam-se de tal modo que apenas se conseguia lembrar da receita de um bolo. As preocupações de ontem a fazer de farinha, o que de novo aconteceu nesse dia mascarado de fermento, todos os planos para amanhã e depois com cara de ovos acabados de deslizar casca fora. E a vida, essa batedeira eléctrica de último modelo, a tratar de misturar tudo com a pressa de quem tem fome e gulodice. Sorriu no escuro e sentiu felicidade por sentir os músculos da face a relaxar. Uma das melhores coisas que o sorriso tem é a capacidade de pôr as...

Tropical

Era a primeira vez que punha os pés em St. Lucia. O nome trazia-lhe algo da infância. Ainda se lembrava bem de quando tinha tido aulas de órgão (e de quantas piadas infantis tinham sido feitas a esse respeito durante anos a fio) e uma das primeiras músicas que tinha aprendido a tocar era a St. Lucia. Lembrava-se também de como a semelhança entre as palavras órgão e oregão permitiram horas e horas de imaginação a fluir no sentido de não chegar a lado nenhum. Esta St. Lucia tinha menos melodia mas muito mais harmonia de águas verde esmeralda e colinas verde não esmeralda. Mal se saía do avião o bafo tropical dava as boas vindas quase com tanta vontade como o cocktail tropical que o esperava na zona de recolha de bagagens. Na verdade a bagagem vinha quase vazia, é a melhor parte de viajar para sítios onde o único frio é o do balde de gelo onde se guardam as garrafas de vinho branco. A viagem de táxi até ao hotel foi tão cheia de percalços como a vida de um técnico oficial de cont...