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Mensagens

Reset

00:00 Os números piscavam a vermelho no fundo escuro. O escuro era da noite por fora, por dentro a culpa não era da noite. Ou então era de noite também por dentro. Dentro da cabeça uma pulsação contínua, um incessante martelar, uma inequívoca prova de vida e um considerável incentivo à morte. O dia rodava dentro da caixa craniana a uma velocidade superior àquela com que camisolas, calças e roupa interior dançam dentro da máquina de lavar roupa. As ideias misturavam-se de tal modo que apenas se conseguia lembrar da receita de um bolo. As preocupações de ontem a fazer de farinha, o que de novo aconteceu nesse dia mascarado de fermento, todos os planos para amanhã e depois com cara de ovos acabados de deslizar casca fora. E a vida, essa batedeira eléctrica de último modelo, a tratar de misturar tudo com a pressa de quem tem fome e gulodice. Sorriu no escuro e sentiu felicidade por sentir os músculos da face a relaxar. Uma das melhores coisas que o sorriso tem é a capacidade de pôr as...

Tropical

Era a primeira vez que punha os pés em St. Lucia. O nome trazia-lhe algo da infância. Ainda se lembrava bem de quando tinha tido aulas de órgão (e de quantas piadas infantis tinham sido feitas a esse respeito durante anos a fio) e uma das primeiras músicas que tinha aprendido a tocar era a St. Lucia. Lembrava-se também de como a semelhança entre as palavras órgão e oregão permitiram horas e horas de imaginação a fluir no sentido de não chegar a lado nenhum. Esta St. Lucia tinha menos melodia mas muito mais harmonia de águas verde esmeralda e colinas verde não esmeralda. Mal se saía do avião o bafo tropical dava as boas vindas quase com tanta vontade como o cocktail tropical que o esperava na zona de recolha de bagagens. Na verdade a bagagem vinha quase vazia, é a melhor parte de viajar para sítios onde o único frio é o do balde de gelo onde se guardam as garrafas de vinho branco. A viagem de táxi até ao hotel foi tão cheia de percalços como a vida de um técnico oficial de cont...

O vestido

A noite era ainda uma criança, daquelas crianças que têm idade para ver bonecos animados na televisão e não têm idade para votar, quando toda a sala tinha ficado boquiaberta com o seu vestido. O vestido tinha sido passado de geração em geração, ninguém sabia muito bem a sua origem no tempo, no lugar ou na pessoa. Era um vestido pouco orientado, mas que desorientava. Tinha cheiro a Cleópatra e reflexos de Helena de Tróia. Contava a lenda que a primeira pessoa a usar o vestido tinha sido a Rainha do Reino de Muito-além-mais-além-do-que-a-vista-alcança, no dia do anúncio do noivado do seu filho, o Príncipe Eduardo, que tinha o cognome de "O Conquistador", não pelas suas proezas militares, mas sim pela sua vida de boémio. Voltando a um passado menos pretérito e mais presente, a entrada dela na sala soltou as mais variadas exclamações. Encarnado e dourado dançavam no seu corpo como dois dançarinos exímios de tango dançavam numa sala escondida de um qualquer bairro de Buenos A...

Sliding Doors

Assim que abriu a porta sentiu o cheiro do perfume dela. As moléculas atravessavam todos os recantos da sala, saltavam do pescoço dela, atravessavam as partículas feitas do mesmo pó que as estrelas, para se irem alojar nos sensores olfactivos do seu nariz, refinados durante anos para saber distinguir o agradável do nauseabundo, bem como tudo o que está pelo caminho. Os cabelos dela brilhavam como se tivessem sido tocados pelo Rei Midas. Deslizavam pelas costas, lembrando-lhe a cor com que fica a encosta inclinada de uma montanha naquele lusco-fusco que se precipita ao pôr do sol. O nariz dela tinha as proporções perfeitas de uma rainha do século XVIII e era empinado o suficiente para lhe dar o ar de quem sabe por onde vai. Os seus olhos estavam, com certeza, nos lugares cimeiros da lista dos olhos mais bonitos do mundo. Tinham tanta vida, pensou ele, eram da cor que resultaria do acasalamento do azul turquesa com aquele verde dos lagos da Croácia. ...

ódio à primeira vista

a história do amor à primeira vista dá imenso jeito a argumentistas, escritores ou outros criativos, mas em geral é quase tão verdadeira como a teoria de que tudo se consegue se se acreditar com muita força que lá se vai chegar. a atracção à primeira vista sim. essa existe. e é capaz de ser das poucas forças que ultrapassam a da gravidade, mas não me vou alongar sobre o assunto ou ainda sou humilhado por gente que perceba verdadeiramente do segundo assunto. mas o amor constrói-se. o amor compra-se e vende-se, não que estejam em causa trocas monetárias. embora às vezes, quantas vezes, ó se. e não falo do amor só no seu conceito tradicional. falo também do amor pelas coisas. do amor pelas pessoas. da admiração. há o click inicial mas depois há horas e horas de enamoramento com a obra da admiração, com as palavras, com os frames, com os takes, com as pinceladas, com os olhos, com as pestanas, com os contornos da cintura. tudo demora, tudo é um processo, tudo cresce, exponenci...

fénix

cleveland devia ser um case study por vários motivos.  era uma cidade que concentrava grande parte da riqueza do midwest americano. " desconhecidos" como o j.d. rockfeller eram daqui e começaram a construir os seus impérios a partir daqui. a cidade foi quase ferida de morte com o encerramento de grande parte da indústria e viu os postos de trabalho fugirem para outros lados. mas nunca morreu e vários visionários viram na crise uma oportunidade. hoje em dia é um dos mais importantes polos medico-científicos do mundo. tem um dos mais importantes portos dos estados unidos, sendo o único porto da região dos grandes lagos com transporte directo transatlântico. no desporto tem dos maiores períodos sem qualquer vitória nas principais competições, mas no meio disso tem dos adeptos mais leais do país. por isso é que sentiram a partida do le bron para miami como se de uma traição conjugal se tratasse. por isso é que o odiaram de morte. como o ódio e o amor estão em extremos que se t...

sobre os lugares

perguntou-me sobre o taj mahal e eu falei da história de amor por trás da sua construção. perguntou-me se era imponente visto de longe. eu respondi que sim e falei dos guias turísticos de ocasião, que ganham a vida todos os dias esperando do lado de fora do complexo por turistas, em busca de um valor fixo para trocar por histórias e por uma capacidade pouco mais do que tosca para tirar fotografias de grupo. perguntou-me pela grande muralha da china, a única obra do homem que se avista da lua. confessei que essa história era mito, mas que em compensação podia garantir que se via lindamente a lua da grande muralha da china. quis saber mais da grandiosidade das torres e das muralhas. falei-lhe do tipo que encontrei numa dessas torres, no ponto menos turístico da muralha que se possa imaginar, a três ou quatro horas de caminho da aldeia mais próxima, que para ali vai todos os dias à espera da meia dúzia de aventureiros que ali passam. a ideia é vender-lhes postais mas acaba por lhes e...