Avançar para o conteúdo principal

44 Moscavide

Mulheres gordas de ancas opulentas; o Casanova de óculos escuros e blusão de cabedal que sussurra obscenidades por cima do ombro da rapariguinha ossuda; o tipo que aproveita o tédio da viagem para pôr em dia a higiene nasal; a dona-de-casa que escolheu a hora de ponta para regressar a casa com embrulhos onde se adivinham vassouras ou varões de cortinado; o casal de namorados a trocar beijos ensalinguados – ele de boné encardido com pala de lado e ela de top justo que deixa o umbigo inflamado do piercing à vista; o indiano de rosto marcado por doenças tropicais, de que nem sei o nome, e que esfrega a barriga farta nas mulheres que passam; o senhor Barbosa que encontrou o Jerónimo do talho e discute a qualidade de alfaces que se dá melhor no quintal da casa “lá da terra”…
Tudo isto nos escassos lugares sentados mais quantos-caibam em pé de um autocarro da Carris. E eu neste microambiente fechado, a suar, a evitar desmaiar, a imaginar planos de fuga e a tentar (ainda) ser simpática e ceder o lugar que fica vago ao meu lado, e que eu tanto ansiava, à velhinha que arrastou as pernas coxas para dentro deste prodigioso transporte. E, quando chego à minha paragem, o perfume fresco que trouxe de casa foi substituído pela água-de-colónia do Casanova, pelo frango frito da dona de casa, pela noz-moscada do indiano e pelos odores de todas as pessoas que me tocaram…
E passo o resto do dia a ansiar por um banho, a jurar que, da próxima vez que o metro se avariar, perco o amor a 10 euros e vou de táxi até à Gare do Oriente. Tinha mais para fazer àqueles 45 minutos que passá-los no 44!

Comentários

Mensagens populares deste blogue

À terceira é de vez!!!

Como tenho muita lata... este post é na linha de dois recentes... (um deles mesmo recentíssimo, o meu último) e trata da adaptação, não de séries (porque somos muito oranginais por estas bandas e isso depois na verdade tornar-se-ia repetitivo... quer dizer... até parece que assim não...), mas sim de filmes estrangeiros, para português. São novidades muito secretas e portanto só espero que tenham bastante cuidado na divulgação das mesmas (ao dizer isto espero que as publicitem, bem como a vinda aqui ao meu "little corner", numa jogada minha à laia d'"o fruto proibido é o mais desejado"). - Tó Pegane : história de um filho de uma ex-emigrante "na França" (daí a sempre típica mescla do nome António com o Pegane do francês com quem a senhora se casou). O rapaz entra para a Força Aérea, e depois há para lá umas intrigas. Ah! Na cena mais espectacular do filme, Tó Pegan faz um cozido à portuguesa, utilizando para aquecimento dos ingredientes a barriga...

na moda

Está na moda escrever sobre o amor. O truque é pintar o dito de lugares comuns e adornar o produto final com duas ou três asneiras das pesadas para emanar pseudo-rebeldia. O conjunto de palavras é tão bonito e tem uma força tão positiva que o que está mesmo a pedir é para ser posto num rectângulo, acompanhado de uma imagem do pôr-do-sol/paisagem verdejante/gatinhos/silhueta de um ou dois corpos (riscar o que não interessa) e feito, está pronto a sair do forno para esse sufrágio universal que são as redes sociais. Está na moda gostar dessa visão do amor. Que tenta copiar alguns traços dos mestres mas que os copia mal e porcamente, borra a tinta toda, mas encontra destinatários com a visão tão baça que nem dão por isso. Dantes havia o condão de ficar preso às letras do Shakespeare, do James, do Cummings e de tantos outros. Todos eles vieram por aí fora, ainda há bem pouco tempo dava para jogar à macaca com o Cortázar, mas está tudo a trocar a macaca por meia dúzia de macacos, que ap...

Sliding Doors

Assim que abriu a porta sentiu o cheiro do perfume dela. As moléculas atravessavam todos os recantos da sala, saltavam do pescoço dela, atravessavam as partículas feitas do mesmo pó que as estrelas, para se irem alojar nos sensores olfactivos do seu nariz, refinados durante anos para saber distinguir o agradável do nauseabundo, bem como tudo o que está pelo caminho. Os cabelos dela brilhavam como se tivessem sido tocados pelo Rei Midas. Deslizavam pelas costas, lembrando-lhe a cor com que fica a encosta inclinada de uma montanha naquele lusco-fusco que se precipita ao pôr do sol. O nariz dela tinha as proporções perfeitas de uma rainha do século XVIII e era empinado o suficiente para lhe dar o ar de quem sabe por onde vai. Os seus olhos estavam, com certeza, nos lugares cimeiros da lista dos olhos mais bonitos do mundo. Tinham tanta vida, pensou ele, eram da cor que resultaria do acasalamento do azul turquesa com aquele verde dos lagos da Croácia. ...